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“Dolor y gloria”: O 8½ do nosso tempo

by João Pedro

Na carreira de um realizador, existe a tradição de se conceber um “8½” quando a jornada está perto do fim. O exemplo mais óbvio é a obra de Fellini, contudo, é bastante comum a ideia de um cineasta efectuar uma autobiografia velada que destaque a sua marca registada e que funcione como um interrogatório do seu próprio processo. Aos setenta anos, Pedro Almodóvar apresenta “Dolor y gloria”, a obra que reflecte os seus quarenta anos de carreira.

A auto-indulgência é algo que está bem assente no arsenal de Pedro Almodovar, e é por isso que construir uma peça sobre cinema, família e um passado amoroso não é o desastre que talvez pudesse confirmar-se caso estivesse nas mãos de outra pessoa.

António Banderas interpreta Salvador Mallo, um realizador e argumentista que não concebe uma longa-metragem há anos, que vê nas mazelas físicas e psíquicas o destaque da sua vida, e que não consegue parar de pensar no que foi e no que poderia ter sido.

A dada altura, é-lhe solicitado que entre em contacto com Alberto (Asier Etxeandia), um ator com quem não fala há anos. Os dois estabelecem um vínculo com o vício em heroína, que Salvador aparentemente desenvolve por puro tédio. Ao mesmo tempo, é apresentada uma representação da sua infância, com Penélope Cruz a retratar a sua mãe.

Banderas ganhou destaque na indústria do cinema na década de noventa, quando a cultura latina se tornou o paradigma sexualizado do ”cool”. Desta feita, se Ricky Martin e Enrique Iglesias reinavam supremos na música; Banderas era o senhor na representação, com o seu sotaque rouco e o físico suave, tornando-se o arquétipo da tendência crescente.

Em “Dolor y gloria”, apesar de apresentar aquela tendência de pimenta selvagem, o actor surge com a barba mais desgastada, menos musculado, com menos uns quilos, e, claro, mais velho.

Fotografia: Pris/Divulgação

Com um tanto ou quanto de inspiração no “8 ½”, de Federico Fellini (1963), o filme de Almodóvar segue um Salvador sem inspiração através de flashbacks da sua infância e das relações do passado, para explicar o fosso criativo da personagem.

A maioria das reminiscências de Salvador concentram-se nas recordações da mãe, mas também na descoberta da sua sexualidade. As lembranças assumem uma qualidade de sonho, geralmente idealizado. Almodóvar toma bastante cuidado em animar os olhos do espectador perante os cenários artificialmente imaculados que emprega durante os flashbacks.

Salvador Mallo não é uma extensão de Almodóvar, mas uma versão de realidade alternativa; alguém cuja paixão por fazer filmes diminuiu com a idade, e que escolhe efectuar uma análise à sua história para reencontrar a criatividade.

É um regresso quase imaculado de Almodóvar, que apesar de não surgir com um canto de cisne, oferece uma abordagem sobre cinema que tira a natureza inerentemente pretensiosa desta premissa para revelar as motivações emocionais que inspiram as pessoas a compartilhar as suas histórias.

Este filme parece uma extensão da auto-reflexão de “Broken Embraces” (que Almodóvar realizou em 2009), que também seguiu a história de um realizador de cinema, mas com mais paralelos com Almodóvar em termos de trajectória da carreira.

Fotografia: Pris/Divulgação

Dolor y gloria” não tem nada tão descaradamente paralelo à própria carreira do cineasta, e se alguma coisa agir contra esse trabalho anterior; ao passo de desejar mudar os seus filmes mais antigos, ele começa a apreciar as peculiaridades que antes ignorava. Se “Broken Embraces” sugeriu um certo desconforto com o legado firmado, “Dolor y gloria” exalta um Almodóvar que se apaixonou novamente, ao usar o seu trabalho mais antigo para criar algo novo.

A espontaneidade exímia de analisarmos que cometemos erros, que nem sempre temos sucesso, e que nos sentimos sozinhos. Reencontrar um amor passado, e conseguirmos entender que aquela história terminou por um motivo concreto. Mas, acima de tudo, recordar que a vida nem sempre é feita de finais felizes.

No filme, há uma cena em que Salvador é questionado sobre se a dor inviabilizou a sua arte. O realizador, que até tem bem latente o conceito de dor física e emocional, não encara essa opção como viável. Afinal, a arte é uma das poucas profissões não descarriladas pela dor. Alguns dos melhores artistas trabalharam a sua arte de maneiras que outros ofícios não podem sequer idealizar conceber.

A dor não inviabiliza a carreira de um artista; molda-a. E o filme de Almodóvar foca-se na maneira como a vida se reflecte na arte de uma forma que apenas um cineasta pode vivenciar. É um filme profundamente pessoal e comovente, ancorado no melhor desempenho da carreira de Antonio Banderas.

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