Em tempos de quarentena, há que recorrer a algumas distrações para passar o tempo. Desta feita, o cinema é uma solução bastante atrativa, numa altura em que necessitamos de desanuviar, e, mesmo que só durante algumas horas, rumar em direção a um universo totalmente diferente. É nessa perspetiva que, a partir de agora, venho recomendar algumas das obras que vigoram no catálogo do site oficial da RTP, e que são de acesso gratuito.
Na primeira edição desta rubrica, decidi escrever sobre “Things to Come” (L’avenir), filmes que Mia Hansen-Løve realizou em 2016, e que é protagonizado por Isabelle Huppert.
Em Los Angeles, o brilho da luz do sol é uma constante; portanto, só quando o tempo muda, com rajadas de vento ou dias chuvosos, é que os habitantes locais reconhecem que existe clima.
Para os espectadores regulares, um filme é a própria forma do sol; isto é, com um enredo dividido em três atos, com equívocos, mal-entendidos ou incidentes por resolver.
E depois, surge “Things to Come”, um filme que foge à ordem dos fatores que muitas obras acabam por seguir por uma questão de disciplina. Não existem atos, heróis ou vilões, e ainda assim é um trabalho cativante e fascinante. Reflete o que podemos reconhecer como sendo a vida, como é vivida, e como pode ser uma experiência sublime.
O filme aborda a vida de uma mulher, e como ela lida com uma enxurrada de mudanças e perdas. E aqui, Mia Hansen-Løve, uma realizadora estreante, tem a sorte de contar com um autêntico “Ás de Espadas”.
A longa-metragem é protagonizada por Isabelle Huppert, que oferece uma performance hipnótica e magnética. “Things to Come” junta-se “Elle”, naquele ano de 2016 em que Huppert efetuou trabalhos elegantes e de um palmarés elevadíssimo.
A meu ver, não querendo descredibilizar o desempenho da atriz vencedora, foi um erro tremendo quando, em 2017, a Academia entregou o Oscar de Melhor Atriz a Emma Stone (por “La La Land”), quando Huppert tinha apresentado estas prestações colossais. Mas, enfim, são perspectivas diferentes, e é mesmo por isso que o cinema é uma arte bela de ser apreciada.
Em “Things to Come”, Huppert dá vida a Nathalie, uma professora de filosofia que tem uma vida confortável e uma carreira de sucesso. O que acontece a seguir, são contratempos que podem destruir a vida de qualquer pessoa: o seu marido pede-lhe o divórcio, visto que pretende reformular o seu percurso com uma mulher mais nova.
Para atenuar a situação, os filhos, já crescidos, decidem sair de casa, e a editora que estava a apoiar o seu novo livro decide abandonar o projeto, com o intuito de apostar num produto mais “chamativo”. Por conseguinte, embora possa sentir-se a fraquejar, Nathalie aproveita todas as mudanças repentinas para dar um novo rumo à sua vida.
Ao longo do tempo, podemos imaginar Nathalie em “Eat, Pray, Love”, “Wild” ou outros filmes de Hollywood que abordam a crise da “meia-idade”, e onde as mulheres precisam de recorrer a extremos físicos e geográficos para recuperar o ritmo. Neste filme, ela tem os seus livros, o seu trabalho e a sua mente. Acima de tudo, pode ensinar, algo que é crucial na sua vida.
A própria Nathalie muda subtilmente, embora não seja a mudança falsa do melodrama de Hollywood, onde as mulheres austeras “relaxam” para se tornarem os espíritos livres da sua juventude. É uma mudança gradual, uma alteração que vem com uma mudança no seu mundo pessoal.
Hansen-Løve retrata esta mudança com um amor sem reverência, permitindo que a personagem principal seja humana e não simbólica. Nathalie não é só mais um mulher, mas o individualismo da sua história exalta uma certa universalidade da experiência humana.
Intelectualmente vibrante e emocionalmente complexo, “Things To Come” é um filme desenhado pela performance fascinante de Huppert e por um argumento bem estruturado. Não procura resolução, mas permite que o mundo continue como está: aberto e fluido. Implica o cenário onde existe um futuro com esperança e sem desespero.
Esta é a minha primeira recomendação em torno das obras que vigoram ou vigoraram recentemente no catálogo da RTP Play. Até ao meu regresso. Tenham um bom filme com a RTP!