Em “Uncut Gems”, os irmãos Safdies continuam a aprimorar o seu estilo. Desenvolvido sob a performance colossal de Adam Sandler, o filme é um trabalho sofisticado e escandaloso, tão elegante quanto enlouquecedor e desgastante.
Ao longo de uma carreira relativamente curta, os irmãos Safdie (Josh e Benny) estabeleceram a posição de repórteres da vida nas ruas de Nova Iorque. Ambos ganharam reputação devido ao facto de proporcionarem representações impressionantes de atores inexperientes, como Buddy Duress e Arielle Holmes.
Trabalharam recentemente com Robert Pattinson, que liderou um elenco um tanto ou quanto amador, em “Good Time”. Agora, em “Uncut Gems”, os Safdie optaram por trabalhar com um dos atores mais famosos dos filmes de comédia de Hollywood, isto é, Adam Sandler.
Sandler interpreta Howard Ratner, o proprietário de uma joalheria em Nova Iorque. O epicentro da sua vida é uma bagunça desmedida, que se divide entre a vida pessoal e a “profissão” que tenta manter.
Por consequência do vício que nutre ao jogo, Ratner está em dívida com quase todas as pessoas que conhece e, desta forma, tenta recorrer a vários tipos de esquemas para conseguir saldar esses infortúnios.
No entanto, quando idealiza a possibilidade de deitar as mãos numa pedra preciosa opala, e encontrar um comprador, Howard acredita que aquela é a solução para todos os seus problemas. Porém, obviamente, isso pressupõe que consegue levar o plano a bom porto.
Acima de tudo, “Uncut Gems” é um filme impróprio para cardíacos, onde cada cena parece espelhar o sangue a fervilhar nas veias de cada personagem.

Fotografia: © Netflix
Este é o mundo em que Howard vive e, por mais desanimador que possa parecer, os Safdies fazem um trabalho impressionante em consumar essa vida numa expressão cinematográfica.
A fotografia de Darius Khondji e a banda sonora de Daniel Lopatin acabam por ser exímios neste retrato, visto que são o reflexo desta imagem sobrecarregada de uma Nova Iorque repleta de violência.
Um filme não precisa de apresentar um cenário agradável para ter sucesso. “Uncut Gems” não pede aos espectadores que simpatizem com Howard, mas solicita que se forme a imagem de um anti-herói incompreendido.
Embora o filme não o glorifique, o enredo começa tornar-se repetitivo quando Howard estraga tudo, e de uma maneira cada vez mais previsível. Connie Nikas, o protagonista de “Good Time”, também era desprezível e privilegiado, mas as suas intenções decentes tornavam-no trágico. “Uncut Gems” retrata Howard como alguém que anda de mão dada com o humor e a tragédia, sendo o humor sombrio da sua história muito mais forte que a própria tragédia.

Fotografia: © Netflix
No que toca a Sandler, surge a retratar uma versão mais séria do seu “eu” violento num filme mais sombrio e maduro do que o normal. Ver o seu tipo de personagem habitual a trabalhar num projeto que se afasta da comédia pode impressionar, mas encaixa perfeitamente.
Para alguns, misturar este tipo de personagem com um tipo perigoso de suspense / drama que raramente é exibido nos filmes de hoje em dia, pode fazer com que tudo pareça uma comédia sombria até certo ponto. Não sei se era essa a intenção, mas funciona, já que o retrato de Sandler pode ser bastante divertido às vezes, mesmo quando não deveria.
Quanto ao filme em si, um aspecto que denoto como bastante positivo é o ritmo. Desde o início, tudo está em movimento. Eu descreveria a ação como frenética, mas estável. Subitamente, ficamos a par de todas as informações assim que entramos no mundo que Howard Ratner construiu ao longo dos anos.
Para um filme com mais de duas horas, o ritmo é extremamente importante. Em termos de história, diminui ligeiramente durante um período, mas a energia nunca se esvai. De certa forma, reflete o personagem principal e permite que pessoas apaixonadas, como uma versão ligeiramente fictícia de Kevin Garnett, encaixem perfeitamente.
Por falar em Kevin Garnett, o ex-Boston Celtic surpreendeu-me. Sem saber nada sobre “Uncut Gems” de antemão, presumi que ele tivesse uma participação especial ou algo do género. Efetivamente, não fazia ideia que poderia tornar-se uma personagem central de tão alto relevo. Apesar da sua falta de experiência em representação, Garnett revelou ser um excelente profissional.

Fotografia: © Netflix/Julia Cervantes
A mesma qualidade pode ser assinalada acerca de uma outra estreante, Julia Fox. Garnett, Fox e os atores mais conhecidos, como Lakeith Stanfield e Judd Hirsch, ajudam a impulsionar a qualidade de “Uncut Gems”. Embora Sandler seja a personalidade com mais tempo de atuação, todos contribuem para a excelência do projeto.
Não admira que entre os produtores executivos de “Uncut Gems”, apareça o nome de Martin Scorsese, o cantor do submundo de Nova Iorque por excelência.
Ao longo da narrativa, é acessível inspirar a brisa leve do cinema americano do final dos anos 70, com a sua amálgama de suspense, noir urbano e com o desejo de lidar com questões como a solidão, alienação e o excesso.
Como conhecedores profundos da história do cinema e da Big Apple, os Safdies aproveitam esta lição para desenvolver um produto altamente pessoal, que parte do particular, ou seja, de um joalheiro medíocre que ambiciona encontrar um lugar ao sol, para delinear uma parábola universal sobre oportunidades perdidas.
“Uncut Gems” revela uma corrida desenfreada e absurda em direção ao abismo, apoiada por um setor técnico de alto nível, pelos testes convincentes dos intérpretes e por uma estrutura narrativa que torna a redundância de temas, eventos e conteúdos o ponto de partida para uma reflexão.
Desta feita, a insensatez da vida de Howard acaba por não ser muito diferente da realidade grotesca do nosso dia a dia, ao repetirmos os mesmos erros, confiarmos nas pessoas erradas, sermos traídos pelas pessoas que nos são mais próximas, e sufocarmos na busca de um salto qualitativo que nunca se realiza.
Este é o universo dos Safdies, que, tal como uma jóia preciosa, ofusca a nossa visão em toda a sua plenitude inquietante.
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