“Titane” pode ser descrito como um thriller psicológico com elementos de body horror e tendências sci-fi mas, apesar de esta ser uma descrição teoricamente correta, não faz a mínima justiça à espectacular brutalidade de filme que Julia Ducournau nos apresenta em (pouco menos de) duas horas.
Com este segundo filme – depois do deliciosamente sangrento “Raw” em 2016 – a cineasta francesa continua a capturar e a definir um estilo de realização muito específico e completamente seu.
O seu fascínio com a maleabilidade e fragilidade do corpo humano evolui para uma obsessão e um apetite voraz por descobrir os limites do mesmo, abordando ainda ideias como o desejo de controlo sobre a forma como nos apresentamos ao mundo, o que deixamos transparecer e o que tentamos reprimir, e também o sentimento de alienação/pertença numa comunidade.
Sentimos que estamos perante uma artista com uma clara visão e imensa ambição criativa, em pleno controlo das histórias que quer contar e como as quer contar.
Alexia (Agathe Rousselle) é a icónica protagonista desta história, uma jovem stripper que trabalha em car shows no Sul de França. É aqui que a encontramos numa das cenas iniciais do filme, dançando e esfregando-se de forma lasciva sobre um enorme Cadillac com chamas pintadas no capot enquanto dezenas de homens a observam com um olhar sedento. Depois do evento, um dos seus “fãs” segue-a até ao seu carro e tenta agarrar e beijar Alexia contra a sua vontade, mas o desfecho da perseguição não é, de todo, o que o admirador esperava: depois de se retrair inicialmente, Alexia inclina-se para o beijo e corresponde aos avanços enquanto que, habilidosamente, retira o gancho metálico que tem no cabelo e o espeta com violência no ouvido do agressor. Após testemunhar esta cena e a subsequente limpeza da cena do crime, o espectador fica sem saber se este foi um ato impulsivo de autodefesa ou se Alexia já tinha alguma prática com todo este processo…
Sem querer revelar muito mais sobre o desenrolar do enredo, adianto apenas um aspeto da história que leva a nossa protagonista para os braços do comandante de um quartel de bombeiros, Vincent (Vincent Lindon). Alexia vê-se em fuga e engendra um plano para se fazer passar por um rapaz de dezassete anos que desapareceu quando era criança e agora é reencontrado pelo pai que nunca deixou de o procurar.
É importante mencionar o papel que Vincent Lindon representa neste filme. Depois de seguirmos o ritmo frenético da vida de Alexia na primeira metade do filme, na segunda temos uma dinâmica completamente diferente focada na improvável relação que se estabelece entre estas duas complexas personagens. As motivações de Alexia não são completamente claras por vezes e Vincent está longe do estereótipo ultra-masculino que seria de esperar, também ele debatendo-se com a falta de controlo que tem sobre o seu físico. As performances dos atores complementam-se numa simbiose pouco ortodoxa que traz ao de cima o melhor de ambos e fornecem a Ducournau tudo o que pode precisar na construção deste filme.
Destaco também a conjugação eficaz da fotografia ultra saturada de Ruben Impens com os diversos elementos do filme, como as diferentes peças metálicas de um carro, o “ventre” de um automóvel que exala vapor e pinga óleo do motor ou ainda planos e sequências (excecionalmente coreografadas pela realizadora) de dança que se intersetam com luzes, fumo e os corpos dos atores para criar um efeito fluído de libertação coletiva.
Titane é o filme mais arrojado do ano (até agora) e é um ótimo sinal para o futuro que uma obra como esta seja a vencedora da Palme d’Or no festival de cinema de Cannes. Encorajo todo e qualquer leitor a ir assistir ao filme numa sala de cinema com um grande ecrã, em alto e bom som. O filme estreia dia 7 de Outubro nos cinemas portugueses.
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