Efetivamente, quando Darren Aronofsky sente o atrito da mais descontrolada ambição e loucura, necessita, no compasso seguinte, de travar abruptamente quase como que para recuperar o fôlego e mostrar uma lucidez cínica, mas sobretudo uma sobriedade de encenação impensável. Após o evasivo (e indesculpável) fracasso de “The Fountain”, em 2006, Darren Aronofrsky presenteou o público com aquela que, para mim, é a sua obra-prima, isto é, “The Wrestler”. Agora, com “The Whale”, o cineasta volta a construir outro drama de um homem sozinho no mundo, talvez com menos eficácia – mas com a mesma abordagem que o distingue.
Depois de “The Fountain”, o enorme sucesso de “The Wrestler” permitiu que Darren Aronofsky voltasse ao cenário comercial, elevando cada vez mais a fasquia do seu cinema esquizofrénico. Não obstante, tal como sucedeu com tantos outros, a história também deve ter tocado a imaginação do jovem dramaturgo americano Samuel D. Hunter, que, alguns anos mais tarde, escreveu “The Whale” uma peça de teatro sobre Charlie, um professor universitário que, devido a uma depressão extremamente severa, vê o seu percurso de vida a desaguar na figura de um homem obeso e incapaz de nutrir qualquer tipo de relação social.
A história repete-se e, e tal como na época de “The Fountain”, Darren tenta, após o fracasso insano de “Mother!”, atingir o jackpot ao trabalhar com o próprio Hunter (no argumento) para a versão cinematográfica de “The Whale”, encontrando em Brendan Fraser o novo intérprete perfeito – pronto e ansioso para oferecer o corpo e a alma em prol dessa tentativa de despedaçar o coração do público.
Entretanto, é justo afirmar desde já que quem não aprecia a ‘pornografia da dor’ chantagista que sempre tendeu a acompanhar Darren Aronofsky (quer fale de cancro, um fracasso, ou o julgamento de Deus), não deverá amealhar justificações pertinentes de aproximação a esta longa-metragem. “The Whale” não nos poupa absolutamente nada à degradação humana e ao famoso soco na barriga para desencadear um mal-estar tão doloroso quanto, sem dúvida, ‘mecânico’.
Entre outras coisas, o realizador explora a natureza teatral ao colocar o filme dentro de um apartamento – a prisão de Charlie, amplificando tudo com um formato 4:3, onde o seu corpo (perpetuamente enquadrado) tende a tornar tudo ainda mais opressivo. Para além disso, o 4:3 também é a janela negra através da qual Charlie dá as suas aulas online a estudantes que, desta feita, são o único contacto que tem com o mundo exterior para além de Liz, uma amiga enfermeira que toma conta dele, tal como a voz do rapaz da pizzaria que deixa caixas de cartão à sua porta todas as noites.
Chega o momento, porém, em que Charlie, na iminência de mais um ataque cardíaco, recebe um diagnóstico que não lhe faculta grandes esperanças, a menos que seja hospitalizado, algo que recusa com as poucas forças que lhe restam. Perto da morte, ele decide recuperar a relação com a sua filha (Sadie Sink), que abandonou (tal como a ex-mulher) quando ela tinha oito anos de idade, para fugir com um estudante por quem se tinha apaixonado.
“The Whale” é um filme que sabe como magoar o espetador, mas – paradoxalmente – é mais eficiente quando se torna menos agressivo. Um exemplo disso recai no desejo desolador que Charlie tem de morrer enquanto alguém lhe recita o ensaio que a filha escreveu sobre “Moby Dick”, ou, por outro lado, nos pequenos gestos de rutura diária, tais como quando toma banho e se barbeia para tentar parecer mais aprimorado aos seus próprios olhos.
Atinge-se o fatalismo pretendido, porque Charlie é, acima de tudo, um homem que enfrenta um luto generalizado: o luto pela família que abandonou quando descobriu um novo amor; o luto por esse próprio amor redescoberto, incapaz de prosperar, e o luto pela promessa única da sua vida. Por conseguinte, o pináculo deste fatalismo está retratado no conceito da tal prisão onde a personagem vive e que, assim, serve para personagens figurantes expressarem o que representam.
Infelizmente, nem tudo corre bem, porque o filme padece profundamente da sua vontade de percorrer com confiança um caminho que já se adivinha e, desta feita, é no argumento de Hunter que encontramos os principais problemas. E são falhas que surgem de forma prepotente sempre que a história começa a contar “algo mais” para além da dor de Charlie: o jovem seminarista que emerge no enredo para obstruir (dado o tema religioso que se apresenta à mistura) o trajeto da obra que já não é leve por si só. E, a juntar, temos o compêndio de Ellie, a filha que, para além de encarnar a versão adolescente e exagerada de Evan Rachel Wood em “The Wrestler”, é uma personagem demasiado “falsa”, idealizada e com poucas nuances (todas claramente visíveis, a propósito).
Por fim, será inútil escrever sobre o filme sem mencionar o desempenho impressionante de um Brendan Fraser redescoberto que, a juntar às centenas de quilos de látex que usa, consegue expor uma humanidade e uma sensação tangível de mal-estar que facilmente recorda Mickey Rourke. São os seus olhos que carregam a dor do mundo, e é na sua voz – calma e magoada – que palpita todo o coração de “The Whale”. De resto, o próprio filme exige que os seus intérpretes atuem através de um manto de prepotência. Mas, na sua maioria, só existe espaço para uma voz.
Não obstante, com este trabalho, Darren Aronofski confirma-se como um dos poucos cineastas que não se envergonha de expor o cinema de arte a uma espécie de ‘exploração teórica e implacável’. Há que congratular as obras que ainda são capazes de provocar reações, bem como os seus autores – que se conseguem fazer amados e odiados em igual medida: puras descargas de vida na linha plana inexorável dos nossos tempos.
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