“The Lord of the Rings: The Rings of Power” promete frisar um marco decisivo no que se faz em televisão. E não se escreve isto com o intuito de os leitores identificarem aqui uma hipérbole – existe, simplesmente, demasiado peso nos ombros metafóricos da série. Se esta adaptação do universo de J.R.R. Tolkien for bem-sucedida, estamos potencialmente a olhar para um futuro em que as plataformas de streaming gastam cada vez mais, na esperança de encontrar um único título para dominar o mercado.
Muitos milhares de anos antes de Bilbo Baggins descobrir um anel mágico, a paz parecia vigorar na Terra Média. Morgoth, que tinha intenções sombrias, tinha sido derrotado e, de acordo com a opinião predominante, o mal também tinha cessado funções. A jovem Galadriel, no entanto, acreditava que o servo de Morgoth, Sauron, planeava uma nova investida, e, assim, decidiu persegui-lo com uma determinação quase obsessiva. À vontade de ferro, acrescia um motivo pessoal: afinal, o irmão tinha morrido na batalha contra o mestre de Sauron.
Por outro lado, Elrond, um bom amigo de Galadriel, via as coisas de forma um pouco diferente, encontrando-se mais otimista em relação ao futuro. Com o experiente ferreiro Celebrimbor, ele queria realizar um grande projeto e, para isso, optou por pedir ajuda aos anões de Khazad-dûm. Noutro lugar, a jovem Nori Brandyfoot lutava contra as regras rígidas da comunidade em que vive. Enquanto todos ao seu redor viviam para realizar as suas tarefas diárias, ela ansiava por uma pausa na vida quotidiana, por uma verdadeira aventura. Certo dia, a aventura bateu-lhe à porta quando, certa noite, algo desconhecido caiu do céu. Ao mesmo tempo, uma curandeira humana chamada Bronwyn e Arondir, um elfo da floresta, também encontravam pistas sobre algo pouco normal a acontecer na Terra-média.
Cada dólar que a Amazon gastou em “The Rings of Power” pode ser visto nos dois episódios iniciais. A palavra “épico” não faz justiça à escala da história que está a ser contada. Inicialmente, somos guiados à Primeira Era da Terra Média, quando os Elfos lutaram contra Morgoth e o seu mais fiel escudeiro, Sauron. Um prólogo que reconta o espaço temporal de batalhas e lágrimas, um sentimento que remonta à abertura da adaptação cinematográfica que Peter Jackson concebeu de “The Fellowship of the Ring”.
Por conseguinte, a série parece ter muitas semelhanças com os seus antecessores cinematográficos. “The Rings of Power” partilha a mesma linguagem cinética; os vislumbres arrebatadores de paisagens da Nova Zelândia, a banda sonora estimulante e um mundo vivo e a pulsar de sangue. Em adição, existem também alguns personagens conhecidos. Morfydd Clark, que, no passado, protagonizou “Saint Maud”, interpreta uma jovem Galadriel, uma guerreira destemida – uma proposta diferente da presença mais etérea e ameaçadora retratada por Cate Blanchett nos filmes de Jackson. Galadriel é ostensivamente a protagonista da série; os episódios levam-na a perseguir Sauron numa terra distante para o reino élfico de Lindon.
No entanto, esta não é a única história que se conta nestes primeiros capítulos. Conhecemos, para além disso, os Harfoots, ancestrais dos Hobbits, que têm o mesmo talento para tropeçar em problemas. Nori, de Markella Kavenagh, é tão problemática e engraçada quanto Merry ou Pippin, ao passo que o misterioso Sadoc Burrows acrescenta intriga a este conto caprichoso que, rapidamente, toma um rumo mais substancial à medida que os Harfoots são atraídos para o mundo das Pessoas Grandes. Patrick McKay e J.D. Payne, que assumem o leme da série, inventaram estes personagens à imagem de Tolkien, e talvez até melhor do que alguns que Jackson tenha criado para as suas adaptações (especialmente quando consideramos o quão “não-Tolkien” foi a personagem élfica de Evangeline Lilly).
Arondir, o elfo retratado por Ismael Cruz Córdova, e a sua amada Bronwyn (humana, por sinal) de Nazanin Boniad, emanam a mesma sensação palpável da Terra Média. Este romance ecoa a ligação de Aragorn e Arwen, e o desempenho estoico de Córdova vende de forma brilhante a idade e o senso de justiça do seu personagem. O segundo episódio apresenta, talvez, as melhores adições ao elenco: Owain Arthur interpreta Durin IV e Sophia Nomvete é Disa, dois anões. Ambos são personagens cómicos, semelhantes a Gimli ou aos Anões em “The Hobbit”, mas McKay e Payne levam-nos a sério, e há problemas que começam a surgir em Khazad-dûm, um local que sabemos que cairá em ruínas. Eles são apresentados quando Elrond (outro personagem dos filmes, já tendo sido interpretado por Hugo Weaving, e agora por Robert Aramayo) visita a antiga mina.
A abundância de personagens, das quais apenas algumas são identificadas a partir dos filmes, os nomes estranhos ou as constantes mudanças de local, são um desafio. Patrick McKay e John D. Payne empregam todos os esforços para nos entregar o melhor resultado possível de um cosmos grandioso. Precisamente pelo facto de ser necessário apresentar e explicar um vasto leque de detalhes, os personagens surgem, por agora, em esboços. Até agora, muitas vezes, são caracterizados apenas por uma única propriedade distintiva. Galadriel é uma mulher determinada que quer vingar a morte do irmão, enquanto que Nori encarna o desejo de emancipação – para citar apenas dois exemplos. É quase certo que os criadores vão refinar os protagonistas ao longo da série. O mesmo sucede em relação ao enredo que, não obstante, consiga trazer à tona de forma impressionante a complexidade e riqueza de detalhes do universo de Tolkien, está ainda longe de se aproximar de uma fase de estabilização em busca do clímax. Estamos a levantar voo.
Os diferentes lugares obtêm uma atmosfera muito individual através de esquemas de iluminação e cores. Os figurinos dão um toque próprio às diferentes criaturas. O casting, desta feita, também visou uma maior variedade, o que já causou comoção. Aqui e ali, a diversidade pode evocar uma certa estranheza do ponto de vista narrativo. Todavia, a decisão de se rejeitar categoricamente a diversidade espelhada seria, quanto a mim, ridícula. É bonito ver a Terra Média povoada por múltiplas feições.
Sem querer maçar-vos muito mais, mas não conseguindo descartar certas notas que considero relevantes, insisto – com alívio e gosto – no facto de “The Rings of Power” não sucumbir à tentação de excluir elementos mais detalhados para chegar a um maior público-alvo. A obra de Tolkien está repleta de mitos e sagas da história nórdica. Por exemplo, Valinor, a terra do outro lado do mar, é quase uma espécie de paraíso na vida após a morte. Os Elfos podem ir para lá depois das suas vidas na Terra Média, para nunca mais voltar. É uma espécie de Valhalla, que também é retratada nesta série. Este paraíso é algo que Galadriel não aceita apenas como a única verdade. Ela quer saber a diferença entre o bem e o mal, a luz e a escuridão, e o seu irmão Finrod tenta aconselhá-la sobre isso.
Embora Galadriel não consiga visualizar outra paz que não tirar a vida a Sauron, o Rei Gil-galad está cansado da luta de séculos. Ele quer paz no mundo. Ele recompensa os guerreiros elfos enviando-os de volta para Valinor e instrui o político e escritor, Elrond, a persuadir Galadriel a aceitar esse cenário. Elrond tem de escolher entre a responsabilidade com o seu rei e a amizade com Galadriel. Como já se escreveu, ele também é designado para ajudar o mestre ferreiro Celebrimbor, que tem um grande projeto em mãos. Celebrimbor quer fazer algo que resista ao tempo. Algo que vai gravar para sempre o seu nome na história do mundo.
Em dois episódios, a passo mais lento, temos a oportunidade de testemunhar um mundo de maravilhas. Valinor, Rhovanion, Lindon e Khazad-dûm. Todas estas imagens são poderosas. A armadura de Arondir é verdadeiramente magnífica. A natureza da Terra Média também entra em cena de maneira benevolente, e os orcs e outros monstros deste universo surgem na sua forma mais requerida. A linguagem usada na série é, quando apropriada, poética e esse detalhe contribui (para mim, desmesuradamente) ainda mais para nos sentirmos perto de Tolkien.
E é com o excerto de um diálogo que termino:
Galadriel – Como saberei que luzes seguir?
Finrod – Por vezes só podemos saber depois de tocarmos as trevas.