Home Cerimónias The Lost Daughter: Mãe pode escrever torto por linhas certas

The Lost Daughter: Mãe pode escrever torto por linhas certas

by João Pedro

À medida que as suas “Neapolitan Novels” (um  conjunto de quatro livros) foram adquirindo notoriedade no mercado livreiro, Elena Ferrante, autora italiana que escreve sob um pseudónimo, tornou-se um fenómeno global. Algumas das suas obras têm recebido adaptações para o pequeno ecrã – como “L´amica geniale”, de Saverio Costanzo – que integra o catálogo da HBO. Entretanto, “Storia Della Bambina Perduta”, um dos romances menos conhecidos da autora, foi adaptado para um filme da Netflix por Maggie Gyllenhaal. 

Água, o mar. A brisa da costa grega acalma Leda (Olivia Colman), uma professora de letras que decide tirar alguns dias de férias e levar consigo uma quantidade incontável de livros na mala. A dada altura, fica obcecada com Nina (Dakota Johnson) e a sua filha, Elena, que exaltam uma relação cúmplice e feliz. Dominada pelo ciúme, Lena é forçada a analisar o passado e, de forma mais preponderante, a sua abordagem enquanto mãe.

Elena é particularmente apegada a uma boneca, que desempenha um papel central na forma como Leda é obrigada a acertar contas com o passado. Toda esta reflexão, acaba por desenrolar-se numa série de flashbacks que retratam a personagem a quebrar alguns dos tabus sagrados da maternidade – ao colocar as suas necessidades e ambições em destaque primordial.

Desde logo no primeiro flashback, apontam-se os lados mais sombrios da maternidade em momentos de aparente leveza. O desaparecimento da filha de Nina (que se perde na praia e é encontrada por Leda) e, em seguida, o da boneca da menina, desencadeia uma turbulência interior em Leda que, de forma colossal, perturba a união “mãe-filha” de Nina e Elena.

Como não poderia deixar de suceder no que a adaptações diz respeito, embora as ideias-chave da narrativa de Ferrante sejam bem transmitidas no filme (aplausos para Maggie Gyllenhaal),  alguns elementos contextuais vitais acabam por perder fulgor.

THE LOST DAUGHTER: OLIVIA COLMAN as LEDA. CR: YANNIS DRAKOULIDIS/NETFLIX © 2021.

No filme, os sentimentos ambíguos de Nina quanto à maternidade estão associados à depressão pós-parto, algo que permanece sub-representado no cinema e na literatura contemporânea. No entanto, o romance não inclui nenhuma referência a um distúrbio médico. Em vez disso, a autora atribui o descontentamento materno a um “mal estar” existencial mais amplo, e que, neste caso, tem raízes na dinâmica violenta da educação algo rude na sociedade patriarcal napolitana. E, efetivamente, esse fator perde-se na adaptação.

No livro, as escolhas de Leda emergem de uma infância afetada pela violência doméstica e pela falta de mobilidade social que afeta particularmente as mulheres. Este conflito interno, vivenciado primeiro pela mãe de Leda e, posteriormente, por ela, pode ser visto como um trauma transmitido de mães para filhas que vai muito além da depressão pós-parto.

Por conseguinte, as diferenças de ambiente são importantes: enquanto que o filme se passa numa ilha grega fictícia; o livro de Ferrante vai ao encontro do sul de Itália, sendo que a família que Leda conhece está ligada à Camorra (a máfia napolitana), que é propício a algumas recordações perturbadoras da sua educação em Nápoles.

No filme, Leda corre o risco de parecer uma snob intelectual, porém, ao deixar de se contar a infância que ela teve num bairro pobre de Nápoles (bem como o submundo criminoso) o filme perde uma componente essencial do enredo. Este aspeto é tão diluído no filme, que, por vezes, aparece como um cenário hispano-americano projetado de forma desajeitada. Desta forma, o filme falha em captar o significado da emancipação de Leda de uma condição complexa, e muitas vezes oprimida, das mulheres no sul do Mediterrâneo.

THE LOST DAUGHTER (L to R): OLIVIA COLMAN as LEDA, DAKOTA JOHNSON as NINA. CR: YANNIS DRAKOULIDIS/NETFLIX © 2021.

A obra de Ferrante inclui vários flashbacks das atitudes violentas da mãe de Leda. E isto, obviamente, não a desculpa, mas explica a raiva reprimida muitas vezes dirigida contra as filhas. Apesar de, na obra, a mãe ser parte essencial para as reflexões de Leda, o filme só a menciona uma vez – “o buraco negro … de onde eu vim”. A ausência desta ligação no filme de Gyllenhaal, não explica os efeitos danosos da maternidade sob a sombra da violência masculina.

Não obstante, o filme de Gyllenhaal desempenha, sem dúvida, um papel importante para melhorar a compreensão e estimular o debate sobre a ambivalência da maternidade, desvinculada das restrições sociais e culturais. Apesar de alguns furos no argumento, Gyllenhaal teve uma estreia razoável na cadeira da realização. E, na calha, resta-me também deixar uma nota de elogio para Olivia Colman, que surge, como sempre, irrepreensível.

Todavia, e se é verdade que, muitas vezes, podemos escapar aos originais, neste caso, em particular, digo-vos que não. Não. O trabalho de Ferrante fornece um testemunho tão poderoso sobre este tema, que a obra – em complemento ao filme – não pode deixar de ser lida por qualquer pessoa interessada nas complexidades da maternidade e, de facto, na condição feminina em geral.

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