“The Irishman”, o novo filme de Martin Scorsese, aborda o percurso de vida de Frank Sheeran, um veterano de guerra que manteve estreitas relações com a família Bufalino e com o líder sindical Jimmy Hoffa. O argumento foi adaptado por Steven Zaillian, a partir do livro de Charles Brandt, “I Heard You Paint Houses”. Por intermédio da Netflix, este regresso de Scorsese reforça o seu status de contador de histórias e artesão de imagens, mantendo a mesma veia ousada e provocadora de sempre.
Depois de assistir aos 209 minutos de “The Irishman”, fiquei desde logo a perceber o motivo pelo qual Martin Scorsese optou por colocar o seu mais recente filme nas mãos da Netflix.
A Netflix ofereceu algo que o realizador valoriza ainda mais que recompensas financeiras – controlo artístico quase por completo.
A Paramount, como sabemos agora, resistiu a esse tipo de liberdade e ao orçamento crescente do filme. Não foi uma resposta irracional, é claro, mas não foi a resposta da Netflix e, em resultado, “The Irishman” foi finalmente concebido da maneira que Scorsese pretendia.
Em toda a sua plenitude, “The Irishman” apresenta um Scorsese vintage: os movimentos sinuosos da câmara, os monólogos ocasionais de fazer suster a respiração, um certo tipo de humor clássico, explosões de ternura repentina e violência casual.
Adicionalmente, existe uma preocupação do cineasta em revelar momentos de reflexão, arrepios de arrependimento ou a preocupação em torno de algumas oportunidades desperdiçadas ao longo da vida. Efetivamente, esta história gira em torno de morte, traição e arrependimento.
Independentemente do plano de negócios em que é exibido, “The Irishman” merece ser visto por qualquer fã de cinema. É, desta feita, uma obra que ocupa um lugar de prestígio no legado extraordinário de Scorsese, e promete garantir uma posição forte na corrida ao Oscar de Melhor Filme em 2020.
É um filme que apenas Scorsese poderia fazer. Um filme suficientemente corajoso para desenvolver a humanidade dos personagens, sem nunca recuar diante dos pecados que apresentam.
Será fácil fazer comparações com “Goodfellas” ou “Casino”. Mas enquanto que “Goodfellas” explora descaradamente a atração pelo estilo de vida em torno da Máfia, e “Casino” exerce a função de aula histórica sobre essa realidade, “The Irishman” hipnotiza o público com um tom melancólico, ao frisar a realidade sombria deste estilo de vida, sem nunca o glorificar.
A cena inicial decorre a um ritmo lento, com um tipo de filmagem inexorável. O intuito primordial incide no facto do público ser apresentado a Frank Sheeran (Robert De Niro), numa fase já avançada da sua viva. As próximas três horas de filme prometem incidir no trabalho e nas decisões que este homem tomou ao longo do tempo em que trabalhou para a Máfia e para Jimmy Hoffa.
Por conseguinte, é assim que vamos acompanhando a ascensão de Frank Sheeran nas fileiras, desde o motorista que entrega carne até ao “pintor de casas”, o eufemismo do filme para um assassino contratado (Scorsese dá ênfase a estas palavras – “I HEARD/YOU/PAINT HOUSES” – o título do livro de Charles Brandt no qual o argumento de Steven Zaillian se baseia).
Frank é o irlandês que começa por não simbolizar mais que uma sardinha no oceano, mas que acaba por conquistar a amizade e proteção de Russell Bufalino (Joe Pesci), que finalmente o conecta ao presidente do Teamsters, o lendário sindicato de camionistas norte-americano, Jimmy Hoffa (Al Pacino).
Frank torna-se indispensável para Hoffa ao longo do tempo. A dada altura, Frank é amigo íntimo de um dos homens mais importantes da indústria do submundo americano, mas depois há um cabo de guerra pela sua lealdade. Depois de ir para a prisão, Hoffa tenta recuperar a presidência do Teamsters, e acaba por colocar em causa a influência do crime organizado sobre o sindicato, para grande aborrecimento de Russell e de todos os chefes da organização.
É uma caminhada na corda bamba vertiginosa entre tempos e lugares, mas graças a Thelma Schoonmaker, funciona praticamente tudo na perfeição. Muito se falou no processo de “rejuvenescimento” do elenco. Quando vemos pela primeira vez, é bastante perceptível, todavia, a notabilidade deve-se mais à conversa constante sobre o assunto de antemão, em oposição à qualidade da tecnologia.
A edição de Schoonmaker prova mais uma vez que ela é a dona e senhora da sua profissão. Ter paciência para permitir o desenvolvimento de personagens importantes, mantendo um tom melancólico durante todo o tempo, enquanto corta um filme de três horas e meia que passa voar, é uma conquista impressionante. É longo, mas nunca árduo, e não há uma única cena que deva ser removida.
Os rostos dos atores são um ponto de referência. De Niro, Pesci e Pacino refletem a passagem das décadas, e os truques digitais são quase impecáveis. (De Niro parece um pouco “robotizado” numa cena com Pesci, mas esse é o único momento estridente). Seja como for, é emocionante ver os três atores no auge da sua elegância.
Frank encaixa-se bem no requisito de De Niro para retratar personagens aparentemente calmas, que encolhem os ombros, e que podem ser levados a uma violência aterrorizante, todavia, o ator leva-nos profundamente à dor de Frank, principalmente quando vemos como a sua vida de crime o transformou num idoso totalmente solitário, cujas filhas adultas não querem vê-lo.
Embora seja a primeira vez que trabalham juntos, Scorsese sabe trabalhar com a excelência de Pacino para exorcizar, e ver o ator o explodir de raiva contra a ameaça silenciosa da marca registada de Pesci (que fez, de facto, um regresso de se tirar o chapéu) foi algo que me fez bombear o coração de alegria. Finalmente, passados tantos anos, Pacino volta a presentear o público com toda a sua hegemonia.
Embora Robert De Niro e Al Pacino surjam irrepreensíveis nos seus papéis, é Pesci que, para mim, acaba por captar as atenções. De regresso ao trabalho (desde que decidiu “abandonar o barco” em 2010), Pesci entrega aquele que pode ser o melhor desempenho da sua carreira, numa atuação disciplinada e refinada.
O terceiro ato devastadoramente pujante acaba por ser a reflexão do objetivo do filme em si. No final, aquele enredo torna-se mais do que um conto sobre política, máfia e violência; torna-se um comentário sobre como estes três podem deixar um homem completamente sozinho no mundo, mas numa abordagem bem diferente da que vimos no final da trilogia de “The Godfather”.
É um final de tristeza sufocante, do vazio patético do crime e dos homens que confundem as suas prioridades na vida. Há quase uma chamada de atenção que fica presente: não existe nada de digno na história de homens violentos e nos destroços que eles deixam para trás.
“The Irishman” é um filme que retrata a selvajaria das escolhas da vida tecidas na tapeçaria das lealdades familiares, reais e imaginárias, concebido por um dos cineastas mais apaixonados de Hollywood.