O enredo de “The Irishman”, o novo filme de Martin Scorsese, estende-se por mais de seis décadas, porém, alguns detalhes verídicos não são abordados. Narrado a partir das memórias de Frank Sheeran, o filme desliza pela influência da máfia na sociedade norte-americana durante o século XX.
(artigo baseado em documentários, livros, artigos, entre outras pesquisas)
Sheeran, Hoffa e Bufalino.
Baseado em “I Heard You Paint Houses: Frank “The Irishman” Sheeran and Closing the Case on Jimmy Hoffa”, de Charles Brandt, o foco primordial do filme de Scorsese foca-se no desaparecimento de Jimmy Hoffa, um dos antigos presidentes do Teamsters, o lendário sindicato de camionistas norte-americano.
Tal como é referido no filme, a vida de Frank Sheeran não foi sempre ditada pelos caprichos da máfia. Aos 21 anos, Sheeran alistou-se no Exército dos EUA e cumpriu mais de 400 dias de serviço. Posteriormente, em 1945, depois de ter sido dispensado, regressou a Filadélfia para trabalhar como camionista.
Mais tarde, tal como é retratado no filme, Sheeran começa a exercer a função de “capanga” da máfia, uma profissão que lhe assentava primordialmente bem devido à carreira no exército e aos conflitos com agiotas locais.
No que diz respeito à maior parte do percurso de vida de Frank, o filme é bastante fiel à realidade dos factos narrada no livro, porém, existem dúvidas quanto ao retrato do desaparecimento de Jimmy Hoffa.
De fato, Sheeran tornou-se amigo íntimo da figura principal do Teamsters. Contudo, embora houvesse uma aliança firmada, este alegou na entrevista que deu origem ao livro que, quando os superiores lhe deram a ordem para eliminar Hoffa, não sentiu qualquer tipo de problema em fazê-lo. Efetivamente, acaba por ir no sentido inverso à tristeza personificada por De Niro no final do filme.
Em última análise, “The Irishman” incide na história de Frank e, desta feita, Jimmy Hoffa não aparece até estar completada quase uma hora de filme.
Por conseguinte, acaba por não ser entregue muito destaque ao respeito que Hoffa conquistou ao longo do tempo pelas inúmeras massas associativas de trabalhadores. Efetivamente, os anos que precederam ao seu desaparecimento foram preenchidos com devoção, patrocínio e dedicação.
A primeira reivindicação de Hoffa à causa dos trabalhadores surgiu muito cedo, quando ainda tinha sete anos. Na altura, o pai, que trabalhava numa Mina de carvão, faleceu vítima de cancro no pulmão derivado à profissão.
Aos 19 anos, começou a trabalhar na secção de armazém nas mercearias Kroger. Depois de experienciar o tratamento injusto a que muitos eram submetidos, liderou a sua primeira greve contra a empresa, e obviamente, foi bem sucedida.
A partir daí, as aspirações de Hoffa começaram a chamar a atenção de várias entidades, acabando por entrar para o sindicato em 1933. Em quatro anos, tornou-se presidente eleito do Local 299, em Detroit, onde começou a interagir com a multidão.
Através de Sylvia Pagano, uma antiga namorada, Hoffa entrou em contato com Frank Coppola, que pertencia à Máfia de Detroit.
Juntamente com outros mafiosos norte-americanos da era da Depressão, incluindo Lucky Luciano e Frank Costello, Coppola ajudou a fundar o National Crime Syndicate, um órgão (com leis próprias) que se encaixava perfeitamente com os esforços dos Teamsters.
Apesar destas ligações, Hoffa era considerado um negociador admirável por amigos e inimigos. Embora exercesse bastante poder na mesa de negociações (uma parte característica do trabalho de Hoffa que não se viu em “The Irishman”), Hoffa forjava sempre um acordo, e não gostava de ultrapassar a fasquia do que considerava ser uma demanda ultrajante.
Hoffa, cujo mandato supervisionava os contratos de mais de 2 milhões de trabalhadores (quase o dobro dos que os Teamsters alegaram possuir em 2013), era um ícone célebre entre a classe média e os restantes sindicatos, tanto que, na verdade, quando Hoffa foi criticado por Robert Kennedy por ter laços com a máfia, a ligação com organizações até fortaleceu a sua posição como herói destemido.
Devido ao facto do papel dos sindicatos ter diminuído muito na sociedade desde a década de 1950, sería fácil descartar o poder que Hoffa e o Teamsters poderiam gerar. Contudo, efetivamente, até o próprio Kennedy chegou a afirmar que, por trás do seu irmão, Hoffa era o segundo homem mais influente no país – porque com o poder que a máfia havia estabelecido ao longo dos anos, a margem de manobra do Teamsters era bastante diversa.
De facto, a dada altura, o clímax de “The Irishman” incide na resolução do desaparecimento de Jimmy Hoffa, um crime que, durante quase meio século, foi a metáfora de uma equação sem solução. Não obstante, o que o filme não aborda são os outros assassinos que alegaram estar ligados ao desaparecimento do presidente do Teamsters.
Em 1982, Charles Allen testemunhou na presença de um comité do congresso que Hoffa tinha sido morto em Everglades, Flórida. Nem uma década depois, “Tony the Greek” Frankos sugeriu aquela que se tornou a versão mais conhecida da história: “Hoffa foi enterrado sob o Giants Stadium em East Rutherford, Nova Jersey”.
Nesta história, inspirada no livro de Brandt, Russell Bufalino (interpretado no filme por Joe Pesci) ordena a Sheeran que silencie permanentemente Hoffa, a fim de proteger os seus relacionamentos comerciais.
Na vida real, Bufalino foi de facto um chefe da máfia poderoso. A ascensão dos Bufalino no submundo do crime remonta ao infame “Apalachin Meeting”, de 1957, no qual várias figuras da máfia foram convocadas a casa de Joseph “Joe the Barber” Barbara, o chefe da família criminosa do nordeste da Pensilvânia.
Contudo, a polícia local foi avisada da reunião, e a propriedade de Barbara foi invadida. Alguns fugiram, mas nem todos escaparam à polícia. O próprio Bufalino, assim como putros criminosos, foram presos por agentes locais e federais.
Embora as acusações tenham sido retiradas mais tarde devido à falta de evidências de atividades criminosas, esse acontecimento arruinou a reputação de Barbara na máfia. Desta feita, reformou-se pouco depois e Bufalino ocupou o seu lugar.
No filme, quando Sheeran faz amizade com Bufalino, não percebe totalmente o poder que aquele seu “padrinho” possui. “The Irishman” acaba então por conectar-se às teorias populares da conspiração, principalmente à ideia de que Bufalino fazia parte de um plano da CIA para assassinar Fidel Castro, e que estava também envolvido no homicídio de John F. Kennedy.
A título de curiosidade, Bufalino acabou inclusive por influenciar a indústria cinematográfica americana. Quando o cantor Al Martino não foi aceite para interpretar o papel de Johnny Fontaine “The Godfather”, Martino fez uso dos contactos reais que tinha na máfia.
Bufalino falou pessoalmente com Robert Evans, o chefe da Paramount Pictures, e Martino ficou com o papel. Bufalino tinha imenso poder durante os anos setenta, não apenas por ser cuidadoso, mas também por assumir discretamente mais responsabilidades, enquanto que outras famílias de criminosos trabalhavam em questões internas.
Quem matou Jimmy Hoffa?
Em relação a algumas incongruências em termos históricos, entrego destaque aos seguintes pontos:
- No filme, Sheeran persegue Crazy Joe Gallo, e acaba por assassiná-lo num restaurante. Contudo, alegadamente, Gallo foi assassinado por quatro membros da família Colombo, que tinha como inimigos.
Em declarações que efetuou, a viúva de Gallo (que esteve presente no momento do homicídio), afirmou que os assassinos eram “quatro italianos pequenos e gordos”. Talvez não fosse uma maneira muito agradável de descrever as pessoas em questão, mas suficientemente credível para a caracterização dos assassinos do seu marido.
Além disso, Pete “the Greek” Diapoulas, o capanga de Gallo (que ficou ferido durante o tiroteio), disse ao New York Times que o autor do homicídio foi Di Biase. Desta feita, nenhuma testemunha está recordada de ter visto Frank no local.
- Permanece em debate a questão sobre se Sheeran matou, de facto, Jimmy Hoffa. Seja como for, incluindo os dois casos que mencionei acima, cerca de catorze pessoas assumiram a responsabilidade pela sua morte.
Nos momentos finais de “The Irishman”, Sheeran faz com que Hoffa entre numa casa. Considerando que pode ser uma armadilha, Hoffa tenta abandonar o local, sendo que nunca desconfia do amigo.
Porém, antes de ter tempo de sair, Sheeran mata-o com dois tiros. Perentoriamente, há quem diga que isto nunca aconteceu. As análises ao sangue encontrado pelas autoridades no endereço onde Sheeran alegou ter cometido o homicídio, não corresponderam com o sangue de Hoffa.
- Tanto no livro como no filme, surge a informação de que dois agentes bastante jovens do FBI visitam Sheeran (numa fase mais avançada da idade) a 25 de outubro de 2001 para obter mais informações sobre a sua história.
Segundo Andrew Sluss, agente do FBI de Detroit, isso também nunca aconteceu. Ao que parece, Sluss era o único agente do FBI designado para “o caso Hoffa” naquela altura, e tinha 46 anos.
Quaisquer outros agentes que procurassem analisar o caso teriam primeiro que obter a aprovação de Sluss, todavia, ninguém o fez. O sistema de suporte automatizado a casos do FBI também mostrou que, entre 1993 e 2008, mais ninguém investigou o caso à excepção de Sluss. Desta feita, fica latente que Sheeran também inventou essa informação.
Curiosidades sobre o filme
Por fim, não poderia também deixar de partilhar algumas curiosidades ao redor da conceção do filme.
Numa ocasião em que foi convidado no “The Graham Norton Show”, Robert De Niro explicou o processo de seleção da história, e a forma como ele e Martin Scorsese ficaram interessados em narrar o percurso de Frank Sheeran.
Scorsese tinha a ideia de contar uma história sobre um “hitman” na idade da reforma. Desta forma, durante a sua pesquisa para o projeto que nunca chegou a ser efetuado, De Niro encontrou “I Heard You Paint Houses”, a biografia de Sheeran, na qual o filme foi baseado.
Embora o conhecesse há praticamente cinquenta anos, Scorsese nunca tinha trabalhado com Al Pacino anteriormente:
“Eu queria trabalhar com o Al [Pacino] há anos. O Francis [Ford] Coppola apresentou-me a ele em 1970. (…) Para mim, o Al sempre foi algo inacessível. Até tentamos fazer um filme na década de 1980, mas não conseguimos o financiamento.” – afirmou Scorsese, durante uma sessão de Q&A no AFI FEST.
De acordo com o cineasta, a principal razão pela qual escolheu Anna Paquin para interpretar a versão adulta de Peggy, a filha de Frank, incidiu no facto desta ser exímia na comunicação de emoções de forma não verbal.
Scorsese estava ciente do talento da atriz para esse tipo de performance, desde que produziu “Margaret”, que foi protagonizado por Paquin.
O confronto entre as personagens interpretadas por Pacino e Stephen Graham foi uma das partes mais emocionantes do filme. Durante a cena em que os personagens lutam no refeitório da prisão, Tony Pro não deveria atirar o gelado de Hoffa ao chão.
Esta foi uma ideia original de Graham, e ele conversou com Martin Scorsese antes de a concretizar, mas queria surpreender Pacino. Por conseguinte, todos os membros da equipa sabiam o que ia acontecer, mas Pacino não. Em resultado, a sua reação no filme é genuína.