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The Fabelmans – Crítica Filme

Os filmes são sonhos que não esquecemos.

by João Pedro

O pontapé de saída são as memórias de infância e da adolescência. É por aí que Steven Spielberg pega para nos oferecer “The Fabelmans”, um romance baseado no papel desempenhado pelo cinema no século XX, que se tornou a única linguagem verdadeiramente universal não verbal. Assim, a câmara super-8 ou 16mm não serve como um fetiche, mas como uma ferramenta de auto-análise e de compreensão do mundo. É a soma das partes do pensamento do realizador nascido em Cincinnati. Espetacular, íntimo, irónico e trágico.

 

Este artigo contém ligeiros spoilers do filme

 

“Onde está o horizonte?”, pergunta John Ford num certo tom áspero a um jovem plantado à sua frente no seu escritório. Porque o horizonte não é apenas um ponto, é uma perspetiva, o sentido de um porquê cinematográfico, e portanto de um porquê de e na vida. Mas será necessário voltar a este ponto mais tarde.

A sétima arte é a arte por excelência do século XX. E tudo começa com um comboio em torno do qual gira “The Great Train Robbery”, de Edwin S. Porter, que, em 1903, foi o primeiro western iconograficamente completo e, assim, o progenitor de toda a indústria de Hollywood. Desta feita, o espanto aos olhos de Sam Fabelman, de seis anos de idade, na sua primeira viagem a uma sala de cinema, também passa pelos carris de um comboio: é aí que se atinge o clímax em “The Greatest Show on Earth”, de Cecil B. DeMille, com a colisão aterradora entre dois comboios. Eis a entrada de Samuel Fabelman neste maravilhoso mundo novo: um acidente de comboio que destrói tudo, e que parece credível, verdadeiro para além de toda a ficção.

Gabriel LaBelle as Sammy Fabelman in The Fabelmans, co-written, produced and directed by Steven Spielberg.

É bem conhecido que o filme de DeMille deixou uma marca profunda no pequeno Steven Spielberg que, seguindo essa visão, começou a fazer filmes caseiros – ao utilizar a câmara Super-8 que a família possuía – e é portanto inevitável que o público veja no pequeno Sammy um alter ego do realizador. Afinal, os elementos do enredo que colidem com a biografia de Spielberg não são poucos: a família judaica de origem russo-ucraniana (cantam em frente a uma fogueira, Kalinka de Ivan Petrovič Larionov) composta não só pelos pais e Sam mas também por três irmãs mais novas; o trabalho do pai, um engenheiro elétrico, e da mãe, uma pianista que abandonou a carreira musical pela família; a mudança de cidade em cidade para seguir a profissão do pai, que de Nova Jersey levará os Fabelmans para o Arizona e depois para a Califórnia; e o bullying que sofreu no liceu, causado em grande parte pelo anti-semitismo, que o cineasta abordou em várias entrevistas.

É evidente que “The Fabelmans” tem muitos elementos autobiográficos, e não é certamente coincidência que o realizador regresse para assinar um argumento – no qual trabalhou com Tony Kushner: é a quarta colaboração entre os dois depois de “Munich”, “Lincoln”, e “West Side Story” – mais de vinte anos depois de “A.I. Artificial Intelligence” e mesmo quarenta e cinco anos depois de ”Close Encounters of the Third Kind”. Afinal, se excluirmos o lado da ficção científica dos outros dois filmes, os três partilham uma reflexão amarga sobre a família, sobre a inevitável desintegração do afeto, e sobre a obsessão que move os protagonistas. A marca de Richard Dreyfuss é a imagem da Torre do Diabo no Wyoming; a de Haley Joel Osment é a mãe, a primeira coisa que vê quando abre os olhos; e finalmente, a marca de Sam Fabelman é o cinema.

Sam adora cinema, contudo, o filme de Spielberg não é só o romance de uma jovem cinéfilo que está a chegar à idade adulta. Não é sequer importante compreender se quando crescer se tornará realmente um cineasta. Ainda a cambalear depois de ver ”The Greatest Show on Earth”, que o perturbou profundamente, Sam pede um pequeno comboio elétrico como presente festivo, que o seu pai tem o prazer de comprar. O comboio move-se perfeitamente sobre os carris, mas isto não é suficiente para a Sam. Na verdade, não é o que ele queria. De repente, apercebe-se: ele não queria o brinquedo em si, mas a oportunidade de replicar mil vezes aquele acidente triunfante e catastrófico, e, por isso, cria um acidente e filma-o em super-8. Só através da imagem em movimento – o filme, como o pai lhe explica antes de entrar para o ver no grande ecrã – se pode exorcizar o medo mais profundo, isto é, só recorrendo ao cinema podemos verdadeiramente efetuar uma análise de nós próprios, e do mundo à nossa volta. Esta experiência é o coração de “The Fabelmans”, juntamente com a crise conjugal entre os pais de Sam (Paul Dano e Michelle Williams são excelentes, tal como todo o elenco, a começar por Gabriel LaBelle, de 19 anos, que interpreta Sam). E, de facto, será precisamente através da análise de um filme que o jovem vai compreender que nem tudo corre bem entre os pais.

L to R: Mitzi Fabelman (Michelle Williams) and Young Sammy Fabelman (Mateo Zoryan Francis-DeFord) in The Fabelmans, co-written and directed by Steven Spielberg.

“Onde está o horizonte?”, voltamos à pergunta de John Ford, que Spielberg confia ao cuidado de um dos seus colegas, David Lynch. “Quando o horizonte está no topo, é interessante”, afirma Ford, “quando está em baixo, é interessante”. Não obstante, “quando está no meio, é chato como o caraças”. Por conseguinte, cabe a Sam compreender onde está a linha do horizonte, e de que forma pode ser correto filmá-la, observá-la e mostrá-la a outros. Até certo ponto, “The Fabelmans” é uma história sobre isto de tentar olhar destemidamente para o horizonte e aceitá-lo, enfrentando-o e superando o deserto da existência.

Spielberg, que não dispensa uma pequena homenagem afetuosa aos seus amigos de toda a vida – o baile de finalistas recorda inevitavelmente tanto o “American Graffiti” de George Lucas como o “Back to the Future “de Robert Zemeckis, apenas para dar um exemplo – aborda a magnífica, dolorosa e, na verdade, muito normal adolescência do seu alter ego com um olhar sempre participativo, nunca retórico, mesmo nos momentos mais didáticos e repletos de um anseio melancólico de doçura. E essa doçura também já tinha sido revisitada na abordagem de Spielberg ao musical de Robert Wise e Jerome Robbins, “West Side Story”, e que nada mais é do que a realização do fim dos tempos, da morte daquele cinema e daquele mundo (o mundo em que ele viveu, que também é o mundo de Lynch e ainda continha os dias de Ford, e talvez até do filme mudo), e do desaparecimento até mesmo das memórias.

Obviamente, esta melancolia também dá espaço à ironia feroz, que também encontra piadas perturbadoras (como quando uma colega de escola de Sam lhe pergunta como consegue viver sem Jesus no coração, e o rapaz responde algo como: “Há mais de cinco mil anos que o fazemos, por isso, vê-se que é possível”) e que também faz de “The Fabelmans” a primeira comédia Spielberguiana desde “The Terminal”, há dezoito anos.

Mas, talvez mais do que tudo, “The Fabelmans” é o estudo, a representação, e o testemunho mais fértil de um detalhe que sempre fez com que a abordagem de Spielberg à realização fosse única, logo desde os primeiros filmes, nomeadamente a sua capacidade de tornar o sentido de maravilha dos seus protagonistas. Não há necessidade de qualquer contra-campo quando o efeito do que está fora do palco pode ser lido sem erro ou hesitação já no rosto do personagem que está a testemunhar o que está a acontecer. O aparecimento do E.T. já está nos olhos de Elliot, tal como os Diplodocus surgem logo no olhar de Ellie Sattler, em “Jurassic Park”. Não importa o que o raio de luz está realmente a projetar se se pode descobrir essa verdade já com o close-up de Michelle Williams. “The Fabelmans” respira a atriz e vice-versa, quase como se fosse o recitar de um poema em andamento.

Talvez seja graças a este poder que Steven Spielberg se apaixonou pelo cinema, porque é a arma que ele sabe usar, de forma natural e milagrosamente espontânea, para se expressar neste mundo. É uma magia que consegue repetir filme após filme, como o excelente feiticeiro que é. Mas o cinema ao qual o realizador está indissociavelmente ligado nasceu analógico, moveu-se sobre o frágil suporte do filme, ressoou com o ruído ritmado do projetor que girava e há este calor, este sentimento, esta poesia de um passado que vemos em “The Fabelmans”

Steven Spielberg não é só um realizador que conseguiu renovar-se e adaptar-se ao presente; é também, em muitos casos, alguém que conseguiu olhar para o futuro com visão, mas a semente do amor e paixão que germinou no seu coração tem origem e sabor noutros tempos: aquele que é vivido no escuro de uma sala, com os olhares inundados pela luz de um ecrã tão grande que consegue suportar o tamanho dos nossos sonhos. E não podíamos pensar num lugar mais bonito para ver este filme.

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