Em jeito de retrato isolado no grande ecrã, podemos argumentar que não houve quem interpretasse tão bem o Palhaço do Crime. Obviamente, existiram excelentes interpretações de Joker antes e depois do trabalho de Heath Ledger. No entanto, o que o ator foi capaz de fazer em 2008 paralisou o público, porque, tal como o personagem, teve a liberdade de conduzir ou manusear o filme à sua vontade – mesmo quando Christopher Nolan impediu que a obra assumisse a forma de vitrine para a performance.
O vilão anarquista de Ledger foi quase uma antítese da versão presunçosa que Jack Nicholson ofereceu aos fãs em 1989. Supostamente, a aparência do Joker de Ledger baseou-se, em parte, em Johnny Rotten dos Sex Pistols.
Porém, mais do que um choque cultural estético, o horror duradouro (e o apelo não tão secreto) do Joker de Ledger, reside no efeito que ele tem no filme, tanto em termos de narrativa quanto de imagem duradoura da cultura pop.
Ao longo de “The Dark Knight”, e falando estritamente sobre este Joker enquanto personagem, o vilão fica mais tempo fora do ecrã do que em cena. Embora só apareça em apenas 33 minutos no total de 2 horas e meia de filme, o Joker é omnipresente, isto é, representa uma sombra que paira sobre cada um dos três protagonistas de Nolan: Batman (Christian Bale), James Gordon (Gary Oldman) e Harvey Dent (Aaron Eckhart).
Nolan e o irmão Jonathan (que também trabalhou no argumento do filme), admitiram que o setup foi inspirado, em parte, por “Jaws”, de Spielberg, outro blockbuster por excelência.
Em ambos os filmes, três figuras díspares de autoridade unem esforços para uma batalha mítica contra uma presença tão maligna e malvada que transcende ser simplesmente um tubarão ou um maluco disfarçado de palhaço. Tal como o tubarão, este Joker não tem arco de personagem, nem crescimento psicológico. Ele é uma força do mal primordial sem limites. E conforme a batalha progride, parece que a sanidade de toda a comunidade está a ser arrastada para o abismo.
Este enquadramento permite que o Joker de Ledger seja, funcionalmente, um substituto abrangente para muitas das ansiedades sociais que podem roubar o sono às pessoas.
No filme, Joker é chamado de terrorista, um ator não-estatal que não pode ser negociado e que não joga por regras pré-concebidas ou noções de justiça. Adicionalmente, existe também a sombra do lobo solitário, o atirador que, inexplicavelmente, puxa o gatilho. Acima de tudo, porém, este Joker representa o buraco no qual muitas das predisposições irracionais da humanidade pela violência são coletivamente armazenadas e ignoradas pela memória cultural, até que não exista outra saída.
Tal como Alfred Pennyworth, de Michael Caine, afirma: “Porque certos homens não procuram coisas lógicas, como dinheiro. Não podem ser comprados, intimidados, convencidos, nem estabelecem acordos. Há homens que só querem ver o mundo a arder. ”
Esta realidade de encarar uma crueldade irracional e desnecessária, é o que entrega uma certa mordida a “The Dark Knight”. Um exemplo disso é quando o Joker faz gato sapato de Batman, o herói ostensivo que recorre à violência contra o vilão numa sala de interrogatório. Perante essa abordagem, o Joker diz-lhe: “Não tens nada com que me ameaçar. Nada que fazer com toda essa força”.
Este Joker é a própria essência do supérfluo, do acaso ou do prestígio. No momento em que Batman ou os gangsters da máfia agem por motivos reconhecíveis (a sede de justiça, o desejo louco de vingança e o lucro económico), Joker vai existindo dentro do filme de uma forma completamente evasiva, incompreensível e coerente segundo o jogo pessoal que se iniciou com a população de Gotham City.
É um jogo terrível, que prevê a devastação e a morte, mas que justamente pelo seu caráter anárquico e ateísta no sentido mais amplo dos termos, intimida aqueles que se deparam com uma série de escolhas morais que só poderiam parecer óbvias.
Por conseguinte, a encenação do Joker acaba por ser o Ás na manga de Nolan, visto que o cineasta consegue fazer uso da aura de maldição e crueldade lunática que sempre acompanhou o personagem, com o verdadeiro aspeto desta máscara de palhaço: a exibição trágica e aterrorizante das fraquezas humanas.
É por isso que o Joker é um vilão tão eficaz para a parábola do filme, sobre a melhor forma de usar o poder moral em tempos imorais (ou seja, irracionais) – e talvez porque a emoção do retrato de Ledger foi de tal forma poderosa, que alimentou o caminho para um Óscar póstumo na categoria de Melhor Ator Secundário, sete meses após o lançamento da longa-metragem.
O Joker de Ledger, mais do que qualquer outro vilão cinematográfico na memória recente, continua a assombrar a nossa memória. A imagem mental do personagem a fazer escorregar a língua para fora do canto da boca, como uma cobra, e a lamber as cicatrizes – um tique inventado por Ledger para manter as próteses no lugar – permanece connosco como um fantasma subconsciente.
Treze anos depois do lançamento de “The Dark Knight”, a abordagem de Ledger ficou vinculada na história do cinema ao lado do trabalho de Anthony Hopkins, como Hannibal Lecter. Uma personagem enigmática e misteriosa, que não precisou de receber muito tempo no ecrã para, de forma inconfundível, permanecer na memória de todos.