Se há uma coisa que Bruno Gascon deixou bem clara nestes seus primeiros anos como argumentista e cineasta, é o compromisso firme com uma questão muito atual: o tráfico de seres humanos na Europa. Os seus filmes funcionam como um dardo afiado que visa não só a inoperância institucional e a corrupção, mas também para alertar o espetador através de uma violência nua e crua.
Se, em “Boy” (curta-metragem) de 2014, testemunhámos a privação da liberdade de um homem e em “Carga”, o seu primeiro filme, o interior de uma organização criminosa implacável através do olhar traumático de uma jovem imigrante; “Sombra” é o olhar de uma mãe, a protagonista da história, desnorteada pelo desaparecimento do filho.
Mas, entre um filme e o outro, Gascon não só muda o cenário – da gruta do carrasco para a casa da vítima – como também aperfeiçoa os critérios quando se trata da utilização de recursos visuais. Se no primeiro optou pelo explícito e enfático, no segundo adquire o poder do perturbador através da imagem ausente. Como se, para além de mudar a ótica e o espaço, a insistência no tema lhe permitisse mergulhar na intriga e nas suas atmosferas.
Para este filme, Gascon propõe um título que – tal como o de “Carga” – bifurca. Por um lado, tem a ver com a memória sombria e dolorosa que uma mãe tem do seu filho raptado. Por outro lado, é uma palavra que esconde outras imagens. É a porta de entrada para o oculto.
Por ser arrepiante, este é o grande valor diferencial do filme. Embora parta de uma fórmula muito semelhante à anterior, a meio caminho entre drama e thriller sobrecarregados, “Sombra” acaba por se revelar como um pesadelo claustrofóbico. É mais virtuoso quando nos deixa desconfortáveis com o que não vemos, do que quando está sobrecarregado de melodrama e se torna enfático com a banda sonora de Filipe Goulart e Milton Nuñez (um excesso do qual “Carga” já tinha pecado).
No entanto, o que realmente prevalece é a capacidade do filme, arranhada pelo lado mais cruel da condição humana. Para a obra, Gascon utiliza novamente a verdade como ponto de partida. O enredo incide numa série de casos e testemunhos reais, que inspiraram a conceção do argumento. Por conseguinte, o caso verídico mais flagrante é o desaparecimento de Rui Pedro Teixeira Mendonça em 1998, visto pela última vez em Lousada aos 11 anos de idade, o protagonista invisível de um julgamento que se arrastou por mais de 20 anos e que foi declarado legalmente morto em 2019.
Perante este cenário, Gascon entrega-se a um exercício de empatia extrema pela dor da mãe. O realizador alcança este objetivo através do trabalho de precisão corporal que a atriz Ana Moreira imprime na personagem. Um recital da face decadente ao longo do tempo – que vai da angústia à raiva e do luto ao desespero – para refletir um processo de luto cansativo que parece nunca terminar. De facto, em vez de ser um filme concebido para dar esperança às famílias, parece ser uma proposta sobre a necessidade imperativa de ultrapassar traumas. Por vezes, aproxima-nos tão insistentemente da alma despedaçada de Isabel e da sua obsessão de décadas em reencontrar Pedro, que o desejo de virar a página se torna palpável.
A completar este mosaico cinzento de rostos em dor, surge o veterano Vítor Norte, que repete a parceria com Gascon. Desta vez, através de uma personagem que também respira vulnerabilidade, mas a partir de uma postura ética diferente daquela que desempenhou em “Carga”. Igualmente poderosa é a interpretação do pai de Pedro, retratado por Miguel Borges.
Porém, os olhares mais cativantes são dados pelo jovem Raimundo Cosme, no papel do único suspeito por detrás do alegado rapto de Pedro. A capacidade de Gascon, através do grande plano e do silêncio que impregna nesta personagem, de estimular uma necessidade terrível de resposta ao público, dá-lhe crédito mais do que suficiente para trabalhar em thrillers.
O cineasta adere ao tom melancólico e solene até ao último minuto e dá flashes de puro terror. Tão sugestivo na sua angústia como insistente na forma. Um filme em que a vítima é um compromisso e a ficção é um instrumento de denúncia. E sim, é claro. Há filmes sobre raptos que são muito mais complexos e multifacetados do que este. Mas, depois de se ver “Sombra”, considero que o choro de um bebé nunca mais será o mesmo.