Em “One Flew Over the Cuckoo’s Nest”, publicado em 1962, Ken Kesey apresentou a enfermeira Mildred Ratched, a responsável pela ala psiquiátrica do Salem State Hospital. Para a conceção da história, Kesey foi buscar inspiração ao emprego que teve num hospício. Em 1975, Miloš Forman realizou a adaptação do livro para o cinema, que foi protagonizada por Jack Nicholson, e, agora, em 2020, foi a vez da Netflix explorar a história em formato de série.
Em “One Flew Over the Cuckoo’s Nest”, de Ken Kesey, a enfermeira Ratched trata da administração da ala psiquiátrica do Salem State Hospital com punho de ferro. Uma mulher esbelta, mas assustadora, que tem de enfrentar Randle McMurphy (o protagonista de Kesey), uma ladrão de segunda, cujo estado de espírito rebelde contagioso acaba por desestabilizar a rotina da enfermaria.
Ratched trabalha constantemente com base na opressão. Ela tem o prazer em restringir o acesso dos pacientes às necessidades básicas, medicamentos e privilégios, enquanto os superiores fecham os olhos a estes jogos psicológicos, visto que os seus métodos questionáveis mantêm a ordem no local.
Desta feita, McMurphy abala a lei e a ordem de Ratched ao desprezar, de forma alegre, as suas regras. O jeito de revolta deste homem inspira os outros pacientes, que também pretendem vingar-se da enfermeira.
Em 1972, a história foi levada à cena como peça teatral protagonizada por Kirk Douglas, que chegou inclusive a comprar os direitos para uma adaptação cinematográfica da obra. Não obstante, a peça não atraiu interesse dos principais estúdios de Hollywood, que temiam que a história gerasse demasiada controvérsia entre o público.
Posteriormente, a United Artist teve a ousadia de apostar no projeto, e acabou por entregar o papel principal a Jack Nicholson, um ator mais novo que Douglas, mas que já dava que falar na indústria cinematográfica.
Por conseguinte, Miloš Forman adaptou a obra de Kesey para o cinema em 1975. O filme arrecadou cinco Óscares da Academia nas categorias principais, algo que não acontecia desde 1934.
As histórias de “One Flew Over the Cuckoo’s Nest” e “Ratched”, a mais recente série da Netflix, estão enraizadas em conceitos familiares, mas são fundamentalmente diferentes em termos de execução.
O filme de Forman incide num cenário naturalista, enquanto que a série de Ryan Murphy parece feita para se adequar ao seu estilo habitual e também para prestar homenagem aos clássicos da Golden Age de Hollywood.
O filme apresenta uma premissa relativamente simples que permite que os atores prosperem. Randle Patrick “R.P.” McMurphy (Nicholson) finge que está maluco para fugir ao trabalho físico numa prisão e, desta feita, vai para um hospício. A enfermeira Ratched, responsável pela ala psiquiátrica, tenta manter o controlo, pese embora o facto de se sentir ameaçada pela presença de McMurphy.
A história gira em torno da dinâmica do poder do personagem, e na possibilidade de McMurphy embaraçar Ratched enquanto tenta fugir. Nicholson conduz o filme com uma performance rocambolesca e sublime, enquanto que Louise Fletcher exprime o seu desprezo de forma não verbal, ao retratar uma enfermeira sob a influência do poder e do desprezo.
Em “Ratched”, Murphy valoriza o estilo e a história acima do realismo visceral. Há uma sensação da velha escola de Hollywood no design e na banda sonora, com a versão mais jovem de Ratched a servir como a personagem Mulher Fatal.
No entanto, o problema é que “Ratched” acaba por desviar-se em várias direções, seja na cumplicidade de Mildred em ajudar o irmão serial killer, o romance com uma mulher mais velha, ou até num enredo paralelo que envolve o conflito com Dr. Richard Hanover, o seu chefe.
Apresentar várias histórias para desempacotar o cerne de uma personagem nem sempre traduz um arco forte. Realmente, para mim, Paulson fornece uma performance bastante razoável (como de costume), mas não capta a abordagem intrínseca de Fletcher.
Visualmente, “Ratched” tem mais estilo do que a longa-metragem de Forman. Murphy apresenta contrastes de cores ousados, que captam o charme da Hollywood clássica.
“One Flew Over the Cuckoo’s Nest” continua a ser um filme de grande impacto devido ao naturalismo inerente. Haskell Wexler e Bill Butler forneceram cenas panorâmicas fora do cenário principal do hospital, que recordam sempre aquilo que os protagonistas procuram: paz de espírito, liberdade e uma relação com o mundo exterior.
Existem muitos momentos de grandes performances a solo, nomeadamente de Nicholson e até mesmo de um jovem Brad Dourif, mas são as cenas de grupo que dão vida ao filme e informam o público sobre as motivações dos personagens.
Se “Ratched” tem a tendência de se inclinar para o melodrama, “One Flew Over the Cuckoo’s Nest” está focado em conversas breves, mas que causam impacto, entre McMurphy e os colegas.
A mensagem central de esperança fez com que o filme assumisse a condição de clássico. Originalmente, McMurphy apresenta-se como uma espécie de “salvador”, mas quando percebe que muitos dos pacientes foram para aquele hospital de forma voluntária, começa a pensar menos na sede de revolta e mais na felicidade dos amigos.
Isso não passa despercebido ao “Chief” Bromden, que mostra misericórdia quando a narrativa atinge o clímax sombrio. Até mesmo para Ratched, existe esperança. Ela é repetidamente desafiada, mas, no final de contas, emerge como uma sobrevivente, uma mulher que se tornou amarga pelo sistema, mas que esconde valências importantes.
“Ratched” tenta desenvolver a história desta mulher, mas perde o foco por meio de vários enredos dramáticos. A personagem torna-se um amálgama de cenários.
Há um valor imenso na exploração da vida pessoal da enfermeira, e de todo o sofrimento que a transformou numa mulher cética, mas a boa vontade acaba por ser desvirtuada em enredos surrealistas que são concebidos para sublinhar a mitologia em torno da personagem.
O filme de Forman é, de facto, mais “masculino” e não fornece muitos insights sobre o estado psíquico da enfermeira Ratched, mas é aí que reside a beleza do filme num sentido metafórico.
Na interpretação de Fletcher, ela é uma observadora, isto é, avalia o que está à sua frente e toma decisões práticas com base na lógica e na evidência. Quanto a McMurphy, o personagem de Nicholson, representa uma quantidade ínfima de pessoas que vivem com problemas de saúde mental, mas que não se sentem restritos a determinados rótulos.
Em “One Flew Over the Cuckoo’s Nest”, é o desconhecido que torna a Ratched de Fletcher um resultado tão mágico. “Ratched”, da Netflix, sente a necessidade de identificar abertamente a personagem de Paulson quase como um anjo da morte, mas “One Flew Over the Cuckoo’s Nest” confia no público para a compreensão do texto. Por isso é que Fletcher oferece um desempenho incrível através de poucas palavras.
De forma antecipada, a Netflix encomendou desde logo duas temporadas de “Ratched”, que pretende então abordar a vida de Mildred ao longo de duas décadas. A história começa na década de 1940 (de acordo com Paulson, Randle McMurphy pode não aparecer até a uma possível quarta temporada).
Efetivamente, é mais um pretexto para contar a história do anti-herói. A ideia por detrás destes projetos tende a seguir uma fórmula concreta: esta mulher nem sempre foi um “monstro”, uma megera. Não houve sempre o verme dentro da maçã.
“Ratched” não é propriamente subtil a contar o processo que levou à “podridão” no âmago da protagonista. Primeiro, somos apresentados a vários flashbacks, depois temos um espetáculo de marionetas e, finalmente, um monólogo piegas em que Paulson revela o trauma mais profundo, para que o público não fique tão confuso.
Por meio desta confusão, descobrimos que Ratched foi uma órfã que perambulou pelo sistema de adoção, ao lado de um rapaz que considerava ser o irmão, até que o casal desembarcou numa família particularmente distorcida. O que ela confessa sobre a infância, sem revelar muito, é o clássico Murphy – uma história pavorosa de abuso sexual e violência que poderia ter sido extraída diretamente do livro de estratégias de choque e de “American Horror Story”.
Nesta série, a enfermeira acaba por sofrer devido às obsessões bem estabelecidas de Murphy. Existe o diálogo ágil e ácido das suas comédias do forro misantrópico como “Glee” e “The Politician”, tal como tendência para apresentar uma peça old school, muito ao estilo de “Feud” e “Hollywood”.
Paulson, que entregou performances excelentes em projetos anteriores de Murphy, faz o seu melhor para não descarrilar nas curvas do argumento endiabrado. A segunda temporada deve chegar em 2022. O futuro desta série é uma incógnita, e a enfermeira continua emaranhada num ninho de cucos.