Em homenagem a este mês de fevereiro, o de eleição para celebrar o amor, efetuei uma seleção de filmes portugueses que, de alguma forma, incidem em histórias românticas.
“Vale Abraão” (1993)
Embora não deixe de ser a adaptação da obra de Augustina Bessa-Luís, “Vale Abraão” é um estudo literário sobre o modelo “Madame Bovary”, de Flaubert.
O enredo incide em Ema (Leonor Silveira), uma jovem de uma família de classe alta, que, como se de uma arma se tratasse, impõe a sua beleza poderosa de forma subtil. A dada altura, torna-se a esposa inquieta e infiel de um médico romântico (Luís Miguel Cintra).
Manoel de Oliveira apresenta um retrato negro da vida de privilégios, mas, ao contrário de Flaubert, preocupa-se profundamente com a sua heroína imperfeita. Por conseguinte, faz questão de lhe entregar um certo grau elevado de inteligência para que ela consiga perceber e analisar que, de alguma forma, comete erros.
A técnica cinematográfica austera, muito ao estilo de Bresson, cria um clima deliberadamente sério para a serenidade, a melancolia e o mistério (com pausas para algumas travessuras absurdas como acidentes de carro). É um filme elegante, e que tem uma qualidade poética intemporal.
“Aquele Querido Mês de Agosto” (2008)
O ‘país’ cinematográfico que é representado por “Aquele Querido Mês de Agosto”, de Miguel Gomes, é peculiar e cativante. O filme é povoado por quem ainda acredita na comunidade e sente orgulho das suas origens.
Ambientado em Arganil, o filme começa por desenrolar-se como o diário de uma viagem. Com muitas atividades no auge do verão, vemos de tudo o que se passa na região, desde festivais e bailes, jogos, até ao carro de bombeiros em frenesim pelas estradas. Só que depois, ecoando uma estrutura bipartida, o documentário desaparece e o filme muda de sentido. Impercetivelmente, já nos damos conta de uma narrativa fictícia sobre uma jovem cantora, a luta contra o pai dominador e um amor impossível.
Assistir a esta mudança é como tentar perceber um truque de magia elaborado, que se torna ainda mais especial pelo facto de vermos cada parte deste processo. Gomes e a equipa de filmagem não estão só atrás das câmaras. A dada altura, surgem e revelam-se ao espetador para dar ainda mais cor à tapeçaria.
Passado um tempo, é difícil perceber o que é verdade, ficção, ou mesmo se isso importa, porque a mistura dos dois mundos é completamente perfeita. O óleo e a água podem misturar-se.
“Aquele Querido Mês de Agosto” não surge apenas para provar que o documentário e a ficção podem coexistir. O filme evidencia que se podem fundir e criar um todo. Embora existam elementos comuns óbvios, há sempre espaço para o fluxo. Claro, não é uma ideia nova, mas o filme, seja na parte de documentário ou ficção, é uma construção para conceber um resultado.
“Singularidades de uma Rapariga Loura” (2009)
Em “Singularidades de uma Rapariga Loura”, Manoel de Oliveira brinca com a nossa sensibilidade de maneiras estranhas, ao estilo de um filme de Buñuel. Nesta ocasião, o realizador dá-nos um conselho claro: desconfiar do amor cego.
É um conto de moralidade hipnotizante, encantador e perturbador sobre o amor condenado, onde o protagonista romântico anseia por amar uma mulher bonita que não conhece.
Oliveira lança avisos sobre o amor à primeira vista, uma vez que exalta a forma como o jovem inexperiente não consegue distinguir a luxúria do amor.
O realizador mistura brincadeira, arte e comércio, ao mostrar como o mundo pode girar em torno de dinheiro, roubo e noções tolas (tal como as singularidades do título surgem da sociedade e da loira).
É um filme atemporal, fundamentado nas formalidades do passado e na maneira como os tempos modernos aparentam ser inexoravelmente arcaicos.
“Os Maias: Cenas da Vida Romântica” (2014)
Portugal, finais do século XIX. Na companhia do amigo João da Ega, que almeja o status de escritor talentoso, Carlos da Maia leva uma vida relaxada. Até é médico aristocrata, mas a profissão não lhe é relevante. Carlos é um bon vivant, e, como tal, arranja sempre mais diversão na doçura de não fazer nada, ao entregar destaque à folia com os amigos e as amantes. Não obstante, o caso muda totalmente de figura quando se apaixona. Carlos vive uma paixão vertiginosa com esta mulher. Ela é uma lufada de ar fresco na sua existência até então triste, mas que o conduz a um abismo mais profundo.
Ao adaptar “Os Maias”, de Eça de Queirós, para o cinema, João Botelho apostou no artifício teatral. Sob várias formas, esta vertente já foi utilizada algumas vezes por cineastas portugueses, muitas vezes pouco inclinados ao naturalismo. “Silvestre”, de João César Monteiro, ou “O Quinto Império”, de Manoel de Oliveira, são alguns desses exemplos.
O romance de Eça de Queirós é portador de toda uma série de conflitos morais e estéticos, que são típicos de um período histórico de transição, como o conflito entre o Iluminismo e o Romantismo, por exemplo.
O autor conta uma história de amor, ao eliminar sentimentos de culpa, punição, e sem dar a menor concessão ao mundo católico. O romance também tem um sub-texto político bastante poderoso, evidenciado pela falência de estados europeus, que Botelho acentua como referência a um período mais atual.
Há também um conflito musical, entre a música alemã, uma emanação da alma, e a música italiana, o fruto da mente. O cineasta usa Mozart e Verdi para enfatizar momentos diferentes do filme.
Todavia, o conflito central é o visual, na representação da realidade, o conflito entre naturalismo e impressionismo. A escrita de Eça é repleta de luzes e paisagens. Por conseguinte, Botelho oferece exatamente isso ao utilizar cenários pintados como no teatro. A título de curiosidade, todos esses trabalhos foram encomendados pelo realizador a João Queiroz, um dos pintores contemporâneos mais conceituados do nosso país.
“Os Gatos não Têm Vertigens” (2014)
Em “Os Gatos não Têm Vertigens”, são contadas duas histórias: por um lado, um rapaz maltratado pela família que não tem qualquer rumo para a sua vida. Por outro, uma senhora que perde o companheiro de uma vida e que, em adição, também não recebe o apoio efetivo da família.
Abandono, solidão, sermos tratados como estranhos, até considerados loucos por quem mais deveria amar-nos. Tudo isto serve de mote para a história.
A ficção é quando duas destas vidas se juntam, mas aqui não encontramos ficção, porque não há um único minuto neste filme que não possamos associar a conhecidos ou à nossa própria história de vida.
É um conto sobre amizade e carinho. Sentimos a dor e a luta de uma senhora a lutar com a solidão e a morte do marido, mas que ainda tem muito, muito amor para dar. Do outro lado, um rapaz, que nunca recebeu amor de ninguém, que só conheceu violência e abandono por parte dos pais, e que, finalmente, encontra algum conforto e cuidado na sua vida.
Talvez este filme surja como um pequeno aparte daquilo que se pode esperar de filmes em torno de histórias românticas, porém, se o objetivo é para exaltar o amor, que se exalte a bonita história de amizade que António-Pedro Vasconcelos conta em “Os Gatos não Têm Vertigens”.