“Matrix” está de regresso ao grande ecrã. Vinte anos depois, não seria exequível relançar a franquia com o mesmo tom e as mesmas perguntas. Assim, para este “Matrix Resurrections”, que começa quase como o primeiro filme, Lana Wachowski faz um contraponto interessante com base na sua própria herança e na indústria cinematográfica. Lana oferece uma obra híbrida entre o remake, a sequela e um novo trabalho, enquanto faz questão de colocar o dedo na ferida dos puristas, ou, por outra, gozar descaradamente com a noção de fan-service.
Ao voltar a abordar as histórias de Neo, Trinity, Morpheus, Agent Smith, e outras personagens que conhecemos em “The Matrix”, Lana Wachowski desconstrói o seu trabalho e quebra os códigos esperados. Ela sugere que olhemos para o que foi feito de uma maneira diferente, para remodelar o todo na sua imagem e programá-lo num tempo mais atual. Além disso, esta é talvez a grande diferença (prejudicial, mas inevitável) entre a trilogia e “Matrix Resurrections”.
Se os primeiros filmes (especialmente o de 1999) foram inovadores e vanguardistas, tanto visualmente como em relação ao enredo, esta quarta obra parece-me totalmente em sintonia com a passagem do tempo. O que a torna menos original, mas mais pessoal para Lana Wachowski, que, sem apelo nem agravo, encena a sua própria psicanálise. A ausência de Lily Wachowski sente-se de forma inexorável. Como se, em dupla, existisse um equilíbrio que impedisse que uma das personalidades prevalecesse sobre a outra. Desta feita, “Resurrections” perde em subtileza, mas entrega uma mensagem, quanto a mim, fascinante.
O filme é ambientado alguns anos após “Revolutions”, e vai reencontrar Thomas Anderson (Keanu Reeves), que vive a desenvolver jogos. Thomas projetou a trilogia “Matrix” como um jogo, e, embora tenha optado por trabalhar num novo jogo chamado “Binary”, é forçado a desviar a atenção para um quarto “Matrix”. É nessa altura que enfrenta muitas dificuldades para separar a realidade da ficção. O seu terapeuta, interpretado por Patrick Harris, tenta estabilizá-lo, mas as coisas pioram gradualmente. Ao mesmo tempo, um grupo rebelde de humanos liderados por Bugs (Jessica Henwick) faz o seu caminho para a Matrix (a realidade virtual ou a construção) para descobrir o que é que de facto está a acontecer.
Outro detalhe importante que deve ser frisado, é que este filme surge da insistência ténue da Warner Bros. para que a dupla Wachowski realizasse mais uma sequela de “Matrix”. Perante o feedback negativo, a Warner esteve no fio da navalha para prosseguir com um reboot / spin-off protagonizado por Michael B. Jordan e escrito por Zak Penn. Foi quando Lana decidiu assumir as rédeas do projeto, enquanto Lilly optou por ficar de fora.
Para simplificar e sem revelar muito, “Resurrections” é um filme assente em duas convicções, uma que é motivada pela liberdade, enquanto que a outra é motivada pelo amor. Impresso entre estas duas convicções, está um comentário inebriante sobre liberdade, nostalgia, amor e como devemos lutar para encontrar o equilíbrio entre tudo isso, em vez de ficarmos sobrecarregados a entregá-lo nas mãos daqueles que não valorizam nada.
A exploração da nostalgia de Lana para trabalhar com a ansiedade e com o uso indevido de looping açucarado, é um dado interessante. Com base no facto da Warner quase ter obrigado a dupla Wachowski a fazer uma sequela, “Resurrections” mostrar a forma como a nossa afeição por qualquer coisa se tornou um trunfo. E, tanto mais se for ajustado e embalado da maneira certa, vamos devorá-lo imediatamente, sem questionar se os referidos ajustes são éticos. Além disso, o filme fala sobre ressuscitar histórias da vida real, porque as pessoas têm sentimentos ligados a elas. Não há necessidade de questionar se o autor destas histórias queria que elas continuassem sob os holofotes. Se as pessoas quiserem à viva força, o sistema vai entregar-lhes o produto de bandeja num formato mínimo e básico.
Os três primeiros filmes de “Matrix” tiveram a liberdade como ponto central, e como tudo pode ser uma ilusão. Já sabemos. Tornou-se objeto de culto. Escolher o comprimido azul significava ficar sob o controlo das Máquinas, ao passo que escolher o comprimido vermelho significava ser arrancado da Matriz. Mas a própria natureza dessa escolha significa que não existe escolha de forma alguma. “Resurrections” tenta perceber se existe algo além destas opções. Temos que nos submeter completamente às Máquinas para desfrutar da Matriz (porque há algumas vantagens nisso, especialmente devido à natureza mortal da humanidade)? Devemos ser felizes com o conceito de liberdade da Matriz e, por isso, viver na miséria e com o medo constante de que as Máquinas um dia levem a melhor? Não há outra forma de coexistir? Porque se não tentarmos encontrar uma maneira de olhar de forma diferente para esta realidade, alguém muito menos compassivo do que nós vai acabar por lucrar com a nossa indecisão para o seu benefício (o que remonta ao próprio acordo com a Warner Bros. para a conceção deste filme).
Mas digamos que existe uma opção de coexistência. Uma opção de ter nostalgia, liberdade e escolha sem destruir completamente o sistema. Se realmente houver uma opção que não seja “binária” por natureza, como é que podemos alcançá-la? Porque qualquer coisa que se assemelhe a uma solução para algo tão lucrativo como a submissão, estará em letras miúdas. O sistema nunca vai querer que encontremos a solução, porque, dessa forma, já não precisaríamos de um sistema.
De acordo com “The Matrix: Resurrections”, a solução é o amor. Raiva, vingança e todo tipo de força bruta são de natureza não renovável e vão desaparecer no trajeto para se recuperar o livre arbítrio. No caso de Neo, é o amor por Trinity. No entanto, pode ser qualquer coisa, isto é, não necessariamente um interesse amoroso. Seja como for, tem que ser algo suficientemente genuíno para cortar o ruído alimentado na nossa cabeça pelo sistema (ruído esse que nos rouba a capacidade de amar e ser amados). É a proposta para se chegar às planícies da coexistência, mas também para viver lá em paz.
O filme enquadra a tese central em torno da relação de Neo e Trinity: os flashbacks induzidos por PTSD de Neo, permitem que algumas imagens de filmes anteriores brilhem, elaborando uma essência do passado através da aparência mais jovem dos membros do elenco e os destinos dos seus equivalentes. No entanto, o filme recusa entregar-se à nostalgia consumista, agraciando os personagens com a esperança sincera de um futuro melhor – um futuro onde não tenhamos que olhar para trás para sentir afeto novamente. É uma rutura notável com o conformismo, já que a ideia de nostalgia de Wachowski é algo que traz conforto, mas não representa a beleza das vidas que virão.
Numa época em que tudo parece estar a desmoronar-se, os sonhos permanecem aqui para nos manter vivos. Lana Wachowski argumenta que ninguém tem de chegar verdadeiramente a um beco sem saída: a simpatia não é apenas um conceito distante, já que a afeição vai sempre prevalecer sobre a artificialidade do corporativismo mecânico. Os traumas do passado não definem o nosso destino, nem o futuro parece sombrio quando a pessoa de quem mais gostamos está lá para nos segurar.
Na minha ótica, as virtudes de “Resurrections” residem num desejo sincero de recuperar “Matrix” como uma obra de intenção humanística, subvertendo as convenções do cinema de sustentação para criar um dos filmes de ficção científica mais sensíveis até hoje. No final das contas, mostra o que a trilogia original sempre representou – a escolha de segurar a mão da outra pessoa, sem nunca a soltar.