João Botelho está a trabalhar na adaptação cinematográfica de “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, o romance de José Saramago. A adaptação de obras da literatura portuguesa, bem como o universo em torno de Fernando de Pessoa, são duas facetas que têm marcado a carreira do realizador. No que toca ao romance, é uma autêntica obra de arte, e é sobre ele que venho escrever.
Ainda sem data exata para estrear, “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, o mais recente filme de João Botelho, é uma adaptação da obra de José Saramago. No passado, o cineasta efetuou adaptações de obras literárias de outros autores portugueses, nomeadamente de Fernando Pessoa (“Filme do desassossego”), Fernão Mendes Pinto (“Peregrinação”) e Eça de Queirós (“Os Maias”).
“O Ano da Morte de Ricardo Reis” – Análise
Tudo começa com o regresso do heterónimo erudito a Lisboa, após a morte de Fernando Pessoa. Ao longo de cerca de quatrocentas e quinze páginas, o nosso Nobel da Literatura leva-nos a uma fantástica viagem pelos anos de 1935 e 36, onde descreve, através do seu estilo inconfundível, os últimos meses de uma vida que nunca começou.
Entre as questões debatidas por Reis, a obra não deixa de fornecer um certo contexto histórico relevante e de excelência, uma vez que oferece o retrato de uma Europa assolada por regimes e ideologias fascistas e opressivos, dos quais Reis é vítima, tendo sido interrogado pelo maior órgão repressivo português, a PIDE, onde qualquer pessoa poderia ser considerada suspeita.
Reis regressa a Lisboa na sequência de um telegrama que recebe de Álvaro de Campos, outro heterónimo de Fernando Pessoa, que o informa da morte do autor. Perante este cenário, Reis efetua a viagem até à capital, decide ficar instalado no hotel Bragança, e toma a iniciativa de ir ao cemitério dos Prazeres, onde Fernando Pessoa foi sepultado.
É assim que Ricardo Reis regressa a Portugal. A ação passa-se maioritariamente em Lisboa, desde o Cemitério dos Prazeres onde Pessoa está sepultado, até à Baixa, passando pelo Chiado e o Cais do Sodré. São os lugares da vida e da morte de Fernando Pessoa.
No hotel Bragança, Reis conhece Lídia, a criada de serviço. Lídia é uma mulher fisicamente atraente e, segundo o poeta, simboliza a vida e os prazeres terrenos. Sendo, portanto, a personagem que poderá levar Ricardo Reis, adepto de que “sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo“, a viver a verdade humana. Porém, Reis é preconceituoso e não alimenta esta relação, pois tem a noção que Lídia não possui um estatuto semelhante à sua, de homem superior e rico.
Para além de Lídia, Reis também conhece Marcenda, uma jovem que vive às custas do pai e com o braço imobilizado. Por conseguinte, na sua fuga à vida real, Marcenda representa a “morte” e a falta de vivacidade. Por outro lado, Lídia representava a “vida,” aquela que o fazia sentir alguma humanidade.
Após ter falecido, no dia 30 de novembro de 1935, são “concedidos” nove meses para que Fernando Pessoa permaneça em Lisboa como fantasma. Todavia, só passado um mês é que se encontra com Ricardo Reis,e é neste primeiro encontro que Pessoa explica que os nove meses se assemelham aos nove meses da gravidez, quando existimos, mas ainda não somos reais e não desempenhamos as funções de um ser humano.
Apesar dos encontros entre os dois não serem frequentes, Fernando Pessoa era para Ricardo Reis a sua única companhia em Lisboa, a quem podia confessar as suas aventuras e também dúvidas. Até que, como não podia deixar de ser, Reis parte de vez com o seu criador. Não me acusem de estar a dar um “spoiler”, pois foi o próprio autor que intitulou o livro de “O Ano da Morte de Ricardo Reis”.
Passavam oito meses e onze encontros. A noite estava quente, naquele final do mês de Agosto. O prazo estipulado por Fernando Pessoa estava a terminar. Só podiam estar juntos oito meses. Era ali, em Lisboa, “onde o mar se acabou e a terra espera”.
O estilo próprio de Saramago não deverá representar qualquer tipo de novidade para os leitores. Efetivamente, a maior dificuldade para quem o lê é habituar-se à ausência de indicadores de mudança de pessoa no discurso, devido à ausência de verbos introdutórios da fala e à mudança de linha, quando diferentes caracteres intervêm.
Se é certo que a ideologia está ligada à Literatura, só depois do 25 de Abril foi possível conceber uma obra como “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, onde a ironia e a crítica se apresentam lado a lado para retratar a governação de Salazar.
São dezanove capítulos, não numerados, de quatrocentas e quinze páginas, de vida de Ricardo Reis, médico de profissão, de guerra, de Hitler, de Salazar, de silêncio, de medo, de presos políticos, de palavras interditas, de manifestações de apoio contra o comunismo.
“Sem dúvida os sindicatos nacionais repelem com energia o comunismo, sem dúvida os trabalhadores nacionais(…) os sindicatos nacionais pedem a Salazar, em suma grandes remédios para grandes males, os sindicatos nacionais reconhecem(…) a iniciativa privada e a apropriação individual dos bens, dentro dos limites da justiça social.” – excerto do livro.
O filme de João Botelho
Na longa-metragem realizada por João Botelho, Chico Diaz interpreta o papel de Ricardo Reis. Fernando Pessoa é interpretado por Luís Lima Barreto, que trabalhou anteriormente com Botelho em “Peregrinação”, assim como Catarina Wallenstein, que interpreta Lídia.
João Barbosa, que trabalhou com Botelho em “Os Maias: Cenas da Vida Romântica” e “Filme do Desassossego”, interpreta Vítor, um informador da polícia política, sendo que Vitória Guerra dá vida a Marcenda.
A cinematografia ficou a cargo de João Ribeiro, e a edição foi confiada a João Braz, colaboradores frequentes de João Botelho. “O Ano da Morte de Ricardo Reis” conta com a produção da Ar de Filmes (Portugal) em colaboração com a Raccord Produções (Brasil) e a Fundação Saramago (PT), com o apoio do Instituto Português do Cinema e Audiovisual (ICA) e da RTP (a emissora nacional portuguesa).
“José Saramago escreveu romances notáveis, criou personagens inesquecíveis e tratou como ninguém a língua portuguesa, sim, essa que nos une a todos, a que nos faz Pátria, como inventou num admirável texto, Fernando Pessoa” (…) “Para estar à altura deste notável romance de realismo fantástico, decidi filmar a preto e branco, para a verosimilhança e a clareza das luzes, das sombras, dos vários cinzentos onde os personagens se vão mover, aflitos ou entusiasmados. (…) Nos planos finais uma explosão de cores deve permitir transportar o espectador para os tempos contemporâneos” – declarações de João Botelho à agência Lusa, em 2019
O filme tem estreia prevista para 2020, todavia, ainda não existe uma data concreta para o lançamento.