Um mar tempestuoso de ideias, sugestões e criatividade a transbordar: é o mote que acompanha “Annette”, o novo filme de Leos Carax. É um musical, um drama, um noir, mas, acima de tudo, é um filme pessoal que fala ao mundo, ao mundo do espetáculo. Um encontro entre o público e o cinema de um autor europeu, numa das suas formas bizarras, que apresenta um Adam Driver poderoso – e, aqui mais do que nunca, a musa inspiradora, Marion Cotillard.
Em “Annette”, falar é um desperdício de tempo. Em vez disso, quase todas as palavras são cantadas – com base em textos de Sparks, banda de rock da vanguarda. Sparks construiu um culto de seguidores (especialmente na Europa) nos últimos cinquenta anos, e, recentemente, ganhou mais destaque devido a um documentário de Edgar Wright. “Annette” segue ao seu sabor.
É um filme sobre amor, ou melhor, a variante francesa mais extrema de Amour Fou – além de sucesso, poder, os media, a iniciativa #metoo e muito mais. O resultado final é estranho, e, de alguma forma perturbador, em que até podemos levantar a questão sobre o nível de autobiografia que Leos Carax apresenta nesta obra.
Henry (Adam Driver) é um comediante de stand-up, que entretém o público com interlúdios chocantes e muitas vezes misóginos. O seu grande amor é Ann (Marion Cotillard), uma cantora de ópera de sucesso. Desse amor, nasce uma criança: Annette. Porém, os demónios começam a fervilhar em Henry, que, por nutrir um sentimento carregado de ódios por si próprio, destrói tudo o que está à sua volta. Por conseguinte, após um cataclismo pessoal, a bebé Annette começa a cantar de repente.
“Annette” fala-nos de extremos, do ciúme, da fama e, consequentemente, do fruto de uma relação ilusória. A bebé do casal nasce em forma de boneca, como uma marioneta às cambalhotas com a vida. Se por vezes surge no seio de uma espécie de filme de terror, noutras é a protagonista da sátira sombria sobre o circo dos media.
Tal como a mãe, a pequena Annette torna-se uma estrela em palco, cuja voz celestial hipnotiza qualquer um. Durante bastante tempo, tal como as cordas que impõem à marioneta que é, a bebé mantém a voz firmemente sob controlo. Todavia, a dada altura, Annette ganha vida, assumindo o leme das suas ações. Amar, cantar, viver, ser ou não ser. A marioneta sai do casulo, para dar lugar ao ser humano livre.
Cotillard é sublime. Mas julgo que essa observação não traz novidades. O retrato desta versão de Lady Macbeth é, quando possível, absorvente. Quanto a Driver, com enorme seriedade, interpreta o artista que se despreza e que provoca, às vezes por provocar, que quer amar mas não pode, e que, portanto, destrói tudo o que conhece. Na sua crueldade, Driver é extremamente impressionante, mas a renúncia radical a um personagem principal simpático e empático, não é uma tarefa acessível, especialmente para um musical.
De certa forma, Leos Carax sempre fez filmes sobre si mesmo, sobre o amor irreprimível, sobre os artistas e sobre o sacrifício incondicional. O mais tardar com “Holy Motors”, os filmes de Carax tornaram-se totalmente auto-reflexivos, visto que abordam o seu trabalho mas também a história do cinema. Desta feita, tornaram-se cada vez mais enigmáticos, com quebra-cabeças surreais de imagens que viveram momentos individuais, mais ou menos deslumbrantes.
“Annette” assume uma forma semelhante, porém, nesta ocasião, os momentos deslumbrantes são distantes entre si. Na sua complexidade, “Annette” é um arquétipo na tentativa de dissecar os abismos impensáveis da arte e da vida.
Não obstante, o filme explora duas das possibilidades mais mágicas do cinema como meio artístico: a musicalidade não só do som, mas também da imagem, do corte, do palco atravessado pela câmara; e a artificialidade excessiva, sem medo do ridículo. Sendo um espetáculo cinematográfico de inegável magnetismo, é, ao mesmo tempo, um filme disposto a negar continuamente as próprias imagens. O sórdido e o triste infiltram-se na maioria das cenas. O olhar eufórico e melancólico torna-se indissolúvel.
A apresentação visual é de tirar o fôlego: os pretos escuros e as luzes de néon opacas, criam uma versão emaranhada e enlameada de Los Angeles. Tal como Nicolas Winding Refn em “Drive”, Carax apresenta uma visão mais rica e evocativa da cidade.
Como seria de prever, “Annette” não vai agradar a todos os tipos de público. Quanto a mim, a linha de Carax entre fantasia e realismo nem sempre é positiva, mas julgo que o objetivo seja este. Dialogar e pôs em causa. Porque se, por um lado, o filme pretende atrair e cativar o público, também quer incomodar e colocar a nossa realidade em causa. A paisagem sonora atmosférica, com imagens oníricas e performances extraordinárias, abraçam o melodrama de rock contemporâneo como nunca se viu antes.