Baseado numa história verídica em que um grande amor encontra uma traição indescritível através dos olhos e ações de Ernest Burkhart e Mollie Kyle, conta a história em torno dos homicídios na comunidade Osage, um povo nativo americano que, nos anos 20, se tornou um dos mais ricos do mundo depois de terem sido descobertos campos de petróleo nas suas terras.
Este é o ponto de partida para o novo filme de Martin Scorsese, quatro anos depois de “The Irishman”, que foi o ato final e crepuscular da sua reinterpretação pessoal do cinema de gangsters que começou com “Mean Streets”. Aqui, Scorsese muda de horizonte e aventura-se no terreno do western histórico-urbano com um pendor social marcante.
As mortes dos índios Osage multiplicaram-se. De casos isolados passaram a dezenas e dezenas. Começaram a morrer baleados, envenenados, vítimas de emboscadas e sempre em circunstâncias misteriosas e enigmáticas, nunca verdadeiramente investigadas pelos homens da lei.
Neste recanto do Velho Oeste, homens poderosos como o magnata John Paul Getty e foras-da-lei imparáveis como Al Spencer sentiam-se em casa, crescendo em tamanho e poder. Foi assim até que um jovem J. Edgar Hoover foi enviado para investigar, juntamente com uma equipa de agentes do FBI, nascidos na Índia, escolhidos a dedo para investigar a partir do interior. É neste contexto que se insere a narrativa de “Killers of the Flower Moon” e, com ela, o ensaio histórico de David Grann.
Para que fique claro, não se trata de um volume histórico requintado, no entanto, a prosa de Grann é espantosa na forma como se desenvolve num thriller. Uma obra chocante, até agora contornada pelo cinema de Hollywood que, antes de “Killers of the Flower Moon”, só a viu visualizada em imagens em duas ocasiões: “Tragedies of the Osage Hills”, de James Young Deer, de 1926, e “The FBI Story”, protagonizado por James Stewart. Neste filme, Scorsese opta por contar a história na sua zona de conforto, com dois atores que conhece de outras andanças.
Por um lado, Robert De Niro, na sua décima colaboração com o amigo, e, por outro, Leonardo DiCaprio, na sua quinta, dez anos depois de “The Wolf of Wall Street”. Inicialmente, era suposto que DiCaprio interpretasse Tom White, o agente do FBI que trabalhou em estreita colaboração com Hoover para resolver o caso. Posteriormente, o papel foi entregue a Jesse Plemons (que voltou a trabalhar com Scorsese depois de “The Irishman”), a favor de Ernest Burkhart, sobrinho do William Hale de De Niro.
A mudança de papel de DiCaprio coincidiu também com uma evolução no tom da história, passando de thriller de ação para drama psicológico de faroeste – e com ela um ponto de vista narrativo diferente. Na pele de Tom White, toda a narrativa se configuraria do ponto de vista do homem da lei íntegro, numa estrutura tradicional e (talvez) livre de pistas.
Em vez disso, como Ernest Burkhart, o filme prossegue nas zonas cinzentas semânticas de um sonho americano afogado em sangue Osage e gravado por Scorsese com iconografias dolorosas e pungentes da morte que nos falam de racismo, discriminação, violência, ganância e amor ressequido, tendo como pano de fundo uma Fronteira e o seu mito desmitificado como talvez só Michael Cimino tenha conseguido fazer (com o seu “Heaven’s Gate”).
Uma inversão de perspetiva do herói para o anti-herói encarnado por um DiCaprio de última geração. Tão frágil e ingénuo quanto intenso, amoroso e resoluto como Ernest Burkhart. Almas de carácter opostas e discordantes trazidas à vida numa mímica irrepetível que vê DiCaprio assumir forma e substância de ator artístico, ecoando o Jack Nicholson da era dourada no seu sorriso ambíguo.
Por outro lado, um De Niro maquiavélico, calculista e manipulador, ora protetor ora carniceiro dos Osage num perpétuo estado de subtração emocional, a quem Scorsese dá um papel de vilão lendário com uma homenagem nas entrelinhas a Al Capone de “The Untouchables”. E, de facto, há algo do filme de De Palma no sabor, no ritmo e na atmosfera de palco de “Killers of the Flower Moon”, a partir do momento em que Plemons/White entra em cena. Uma caça ao homem rigorosa e pulsante que dá à narrativa de Scorsese um último fulgor memorável.
Até lá, na verdade, a narração do filme vive de flashes e de uma progressão natural, nem sempre harmoniosa. A carnificina dos Osages desenrola-se de forma meticulosa, mas convulsiva, intercalada por ligações de realização destinadas a dar corpo e cor ao contexto cénico, que acabam por colonizar uma boa parte da duração de quase três horas e meia.
Todavia, no primeiro e segundo atos, que não são desprovidos de duração, prevalece a beleza pura das imagens cinematográficas de Scorsese, feitas de história, rituais, tradição e vida simples. Imagens enriquecidas pela batalha de inteligência artística DiCaprio/De Niro como passado e presente do cinema de Scorsese. E futuro, porque no meio destes dois titãs do cinema, Lily Gladstone revela-se ao mundo em todo o seu talento cristalino como o coração pulsante da última obra do realizador nova-iorquino.
Uma obra cujo primeiro detalhe que talvez se destaque e a consagre – antes da história e do excelente nível das representações – será a sua duração caraterística. Não é que Scorsese não tenha habituado o espetador a filmes fluidos: “The Wolf of Wall Street” (180 minutos), “Casino” (179 minutos), “The Aviator” (170 minutos), “Gangs of New York” (168 minutos).
Em contrapartida, talvez não seja coincidência que as duas longas-metragens mais longas da sua carreira sejam The “Irishman” (209 minutos) e agora “Killers of the Flower Moon”, produções nascidas graças aos esforços de produção da Netflix e da Apple TV+ com a Paramount Pictures, respetivamente.
Obras de arte concebidas para o cinema, em defesa de um cinema elevado, desprovido de áridas incursões comerciais de blockbuster, mas depois destinadas, no cômputo geral, a serem apreciadas na plataforma, em streaming, em virtude de uma duração quase anormalmente encorpada. Porém, ambos os filmes sofrem um curto-circuito em termos artísticos e de produção. Isto porque são filmes de rutura, anti sistémicos. Obras que se servem da lógica industrial vigente para depois demolir por dentro o próprio sistema que as criou, colocando-se em oposição: o melhor possível para um revolucionário, um filho da Nova Hollywood como Scorsese.
Com quase 81 anos de idade, Scorsese assina uma obra extraordinária. Evolui numa transição do preto-e-branco para a cor no rosto lendário de DiCaprio e fecha com uma cena meta-linguística de noticiário radiofónico para um aplauso aberto. Obra que, para qualquer realizador, seria o filme de uma vida. Não obstante, no que a Scorsese diz respeito, nem sequer se encontra entre os filmes de referência pelos quais um dia será recordado, nomeadamente “Taxi Driver”, “Raging Bull” e “Goodfellas”.
O que fica é o conhecimento, ou melhor, a certeza de que sempre que um autor como Scorsese decide avançar para o terreno impenetrável do cinema, é certo que vai tirar de lá um diamante, uma joia de beleza indiscutível. E “Killers of the Flower Moon”, fraquezas à parte, é o cinema em estado puro: inviolável, imperecível, inafundável, a defender a todo o custo.