A época alta do verão traz sempre consigo novidades no que a filmes diz respeito e este ano não podia ser diferente. Os holofotes pairam agora sobre o muito esperado embate entre Barbie de Greta Gerwig e o mais recente filme de Christopher Nolan. Esta sua nova longa-metragem é marcada, não apenas, pela rutura da parceria duradora entre este último e a Warner Bros, cuja distribuição ficou agora a cargo da Universal Pictures. Mas também por ser um terreno novo para o realizador, visto se tratar simultaneamente de uma adaptação semi-literal de uma obra literária, American Prometheus (2005) de Kai Bird, algo que já tinha sido explorado um tanto levemente com The Prestige (2006), mas principalmente, por esta nova aposta ser uma biopic ou cinebiografia.
Apesar destas aparentes dessemelhanças face ao seu reportório um tanto homogêneo, Nolan vai buscar alguns elementos habituais: atores renomados, que já haviam trabalhado consigo no passado, para o elenco, bem como todos os artifícios visuais e técnicos de que dele se espera. J. Robert Oppenheimer (Cillian Murphy) é portanto o foco desta longa-metragem, uma que se debruça em profundidade na história de vida daquele que foi um dos físicos teóricos mais importantes do século XX. Um dos desacertos típicos de cinebiografias é o de recorrer a recortes simplistas e soltos da vida de quem está a ser retratado, tendo em mente a sua glorificação, colocando debaixo do tapete os aspectos mais negativos. Felizmente, é uma produção que está em boas mãos e a realização optou pelo caminho contrário, apostando no realismo e na dureza das cenas, mesmo que isso vá contra o padrão da indústria de cinema norte-americana.
Visto priorizar tal rumo criativo, Nolan acaba por tocar em inúmeros pontos que ficaram de fora de tantas outras personas cinematográficas de Oppenheimer. Mais do que um filme científico que toca no seu papel enquanto visionário e líder do Projeto Manhattan, é sobretudo um que volta o seu foco de atenção para o aspecto político e social do pai da bomba atómica. O enquadramento histórico que é feito vai desde os tempos de formação na universidade, algures na década de 1920s, onde tem contacto com outras mentes brilhantes e onde desperta interesse na matéria nuclear, passando pela década de 1940s onde é então recrutado pelo General Groves (Matt Damon) para chefiar o projeto secreto em Los Alamos, até ao culminar vertiginoso da década de 1950s onde se dão audiências contra a sua reputação, que lhe irão custar tudo o que conquistou até então.
Embora a narrativa siga, em partes, uma linha coerente, é um trunfo do argumento optar por desorganizar os vários eventos ao longo do filme. Especialmente, por dividir em grande modo, a história em dois segmentos, uma que percorre então a correta ordem dos factos históricos e outra mais distante no futuro que remete para a audiência de segurança de 1954 realizada pela Atomic Energy Comission (AEC) representada executivamente à época por Lewis Strauss (Robert Downey Jr.). Este saltar consecutivo entre eventos aliado à tensão permanente cria antecipação no espetador por querer saber qual o desfecho de Oppenheimer, especialmente, creio eu, para a maioria da audiência que desconhece pormenores em detalhes dos acontecimentos aqui retratados. Devido à imensidão e qualidade do elenco torna-se mais difícil existir profundidade suficiente em cada atuação/personagem para criar algum tipo de ressalto, exceptuando a figura titular como é lógico.
Dito isto, o meu destaque vai para Emily Blunt enquanto Kitty, a mulher do principal cientista, que compensa com um lado mais racional, carregando alguns dos momentos dramáticos mais poderosos do filme, mesmo que seja ausente numa grande fatia da sua duração, e para Florence Pugh como Jean Tatlock, um amor do início da vida do físico teórico, e futura amante, que deixa uma marca de distinção sempre que aparece em cena no grande ecrã. Mas tal como mencionei, as atenções vão para Cillian Murphy, naquela que é possivelmente a sua melhor atuação, rivalizando com aquela vista na famosa série televisiva Peaky Blinders (2013-2022). Uma peça enorme daquilo que faz Oppenheimer ser a obra cinematográfica que é, está patente na entrega total do ator para o papel, que vai desde os mais simples maneirismos até ao olhar, presença e reações.
Oppenheimer é retratado como alguém complexo, de tal forma que embora fique claro as suas posições, como exemplo, no uso da bomba atómica no complexo de armamento industrial de guerra americano face à nação japonesa ou até mesmo quanto à mudança de opiniões políticas ao longo do tempo por conveniência ou não, a verdade, é que de certo modo, há uma ambiguidade no argumento, que a meu ver, não é deixada ao acaso. Cillian Murphy devolve com enorme confiança tudo aquilo que era esperado da representação do físico teórico no grande ecrã e indo mais além do argumento. O que será impensável não considerar já esta prestação mais do que digna para futuras premiações do ano, pois com certeza é já o meu predileta.
As restantes atuações evaporam-se devido à sua rápida passagem no ecrã, como já dei a entender. Ainda assim, algumas marcarão com certeza pontos chave favoritos da história para muitos, como é o caso de Einstein (Tom Conti) e do Presidente Truman (Gary Oldman). Não são, no entanto, aparições gratuitas, estas e de tantas outras figuras políticas e acadêmicas historicamente relevantes, todas tem o papel a cumprir no argumento e Nolan sabe reduzir ao elemento mais essencial, nesta adaptação difícil, sem tirar o devido peso dos factos. Falando nestas questões, o filme é também cientificamente preciso, com várias explicações e nuances que qualquer familiarizado com o mundo da física e química irá ficar satisfeito, mesmo que em momentos possa alienar o público comum com termos excessivos, mas que no geral, não são fulcrais o seu total entendimento para desfrutar da experiência.
Voltando um pouco atrás, esta representação do personagem principal serve-se da cinematografia eximia de Hoyte Van Hoytema, lugar frequente que tem ocupado em outras produções de Nolan, para construir um olhar, simultaneamente, de genialidade do próprio Oppenheimer na forma como este percepciona o mundo atómico e tudo à sua volta, evidente em várias cenas no início do filme, como de tormento, visível no momento em que é recebido com grande euforia por uma multidão de pessoas que o parabeniza e festeja o acontecimento, logo após a queda das bombas em Hiroshima e Nagasaki. Isto em pequena escala, porque tal como os trailers e entrevistas o faziam antecipar, há o momento auge da história, do primeiro teste de detonação de um dispositivo nuclear, o da bomba Trinity, que tem tanto de espetáculo audiovisual, como de horror, devido a tudo o que isso implicaria.
Focando apenas no primeiro aspecto, é efetivamente das cenas mais bem conseguidas carreira do realizador, quer na tensão, quer no enquadramento, algo que só consigo comparar com a cena da explosão em There Will Be Blood (2007). As questões técnicas estão como seria de esperar bem conseguidas, dentro de tudo aquilo que os fãs do realizador gostam e aguardam, mas que devido a se tratar de um filme menos fantasioso que outros como Interstellar (2014) acaba por reduzir em oportunidades a capacidade de montagem e engenho de efeitos especiais que lhe é tanto reconhecível. Outro ponto pelo qual a escolha por uma cinebiografia tenha sido invulgar.
Ainda assim, tal como outros, é uma obra densa e longa, mesmo muito longa, são três horas de duração, que ainda que possa dizer que não me fez olhar as horas, tal longevidade é sentida no último ato, onde se esperava que seria um mero epílogo, na verdade, ainda faltava um terço da narrativa por concluir. Manter este segmento é importante e totalmente necessário, contudo, a transição que o antecedia fica assim um pouco aquém, por dar uma sensação errada de desfecho. Em contrapartida, e como último ponto, refiro-me às partituras musicais de autoria de Ludwig Goransson, do qual já me havia tornado fã aquando de Tenet (2020). São de uma intensidade poderosa que elevam a dramaticidade dos momentos ao expoente máximo.
Em jeito de conclusão, Oppenheimer é muito mais do que a criação da bomba atómica ou das implicações políticas e eventos bélicos daí resultantes, é sobre a narração de uma figura histórica notável que acabou num rumo trágico e fatídico, do qual a própria nação que o emancipou, lhe tentou manchar a reputação, ostracizando-o academicamente e politicamente. Não será surpresa para ninguém se o considerar, até ao momento, como a melhor longa-metragem do ano, no entanto, o feito inesperado é que não esperava que fosse Nolan, o célebre realizador moderno da ficção científica escapista e da execução técnica de qualidade, o responsável por elaborar uma das melhores biopics que há memória da história do cinema norte-americano. É, portanto, a escolha certa e obrigatória nesta temporada de verão muito concorrida.