“I’m Thinking of Ending Things”, o novo filme de Charlie Kaufman, é um exercício brutal acerca da existência humana, ao tentar dissecar mentiras, distrações e camadas de proteção que construímos para bloquear a dureza da realidade.
Em “I’m Thinking of Ending Things”, como, de resto, já seria de esperar, Kaufman oferece uma oportunidade única para os fãs efetuarem múltiplas análises sobre uma história.
É uma experiência pesada de mais de duas horas que procura cada pedaço singelo da nossa atenção, à medida que a densidade dos diálogos e a natureza estática de algumas cenas desafiam cada vez mais o público.
I’m thinking of ending things. É o pensamento recorrente de uma jovem (Jessie Buckley) que está prestes a conhecer os pais de Jake, o novo namorado. O casal namora há cerca de seis semanas, e há uma faísca inerente entre eles – embora estranha. Conforme o carro avança e a neve cai, a jovem não consegue livrar-se deste pensamento, alojado no seu cérebro como a letra de uma música ou um parasita.
I’m thinking of ending things. O que é que ela está a pensar em terminar? O relacionamento com Jake? Ou alguma outra coisa? E qual é o motivo para Jake estar tão estranho?
Não metia piada se eu respondesse a isto. Aliás, eu nem consigo ter respostas concretas para estas questões, mas também não quero adiantar-me com spoilers.
Adaptado do romance de Iain Reid, “I’m Thinking of Ending Things” é uma viagem ao estilo de Charlie Kaufman. O cineasta transforma o thriller filosófico e sonhador de Reid num produto surreal e singular. É assustador e hilariante. Perturbador e cativante.
Tem a capacidade inerente de tocar o público, se bem que de forma divergente. Enquanto que uns podem considerar o filme pouco arrojado e até desmesuradamente espirituoso, outros vão encontrar a hipnose da cobra que, em vez de morder, decide facultar um beijo arrepiante.
A jovem (ela não tem nome no livro de Reid e, no IMDb, surge mencionada como Young Woman) é a nossa guia, e a voz de Buckley – plana, mas ansiosa – acompanha-nos ao longo da viagem.
A narração poética e estranha leva-nos à questão: Quem é ela? Ela é muitas coisas. É a mulher ideal de Jake. É o tipo de rapariga que queremos levar para casa, para a apresentar à mãe e ao pai. É pintora, poetisa e até estuda física quântica. Ela contém multidões. E, não obstante, permanece evasiva e inqualificável. E, num ciclo vicioso, diz-nos e volta a dizer: I’m thinking of ending things
Assim que o casal chega à quinta onde os pais de Jake vivem, o rumo dos acontecimentos passa de banal a estranho num estalo de dedos, e, sem darmos por isso, já testemunhamos uma atmosfera completamente bizarra.
A mãe de Jake é interpretada por Toni Collette, com o tipo de mania impressionante e muitas vezes hilariante que esperamos da atriz. O pai de Jake é interpretado por David Thewlis, um homem rude e prático que parece atordoado e indiferente. O casal é desconfortável, com a mãe a rir muito de coisas que não são engraçadas, e o pai a deambular como se estivesse embriagado.
Mas a jovem (ou Lucy, ou Louisa, ou como a quiserem chamar) é complacente. Ela quer causar boa impressão. Ela quer ser educada. Ela quer fingir que está tudo bem, embora a casa pareça ter saído de outro século. Mesmo que haja uma cave assustadora. Mesmo que o cão da família pareça estar constantemente encharcado e não consiga parar de sacudir a água do pelo. Mesmo assim, ela tenta agir normalmente.
E durante tudo isto, Kaufman é casmurro, e vai apresentado o auxiliar de uma escola (Guy Boyd) que parece completamente desconectado da história, mas que, efetivamente, promete ser fulcral.
Qual é o significado deste filme?
Através da perspetiva de Kaufman, “I’m Thinking of Ending Things” desenrola-se não como um sonho, mas como a sombra de um sonho. Parece que é algo que se infiltra no nosso cérebro quando estamos desprevenidos, e que desaparece quando recuperamos os sentidos.
As cenas deste filme são projetadas para que exista a necessidade de rir, de ter medo e até de sentir uma solidão acutilante. De repente, tal como a obra, parece que somos um satélite esquecido no espaço.
O filme não exalta uma espécie de vergonha das suas inspirações. As críticas de Pauline Kael são descartadas. Wordsworth inspira um trocadilho digno de algum resmungo. A jovem recita um poema chamado “Bone Dog” (na verdade, foi um poema escrito por Eva H.D., amiga de Kaufman):
“So that you think of the oppressive barometric pressure back where you have just come from with fondness – because everything’s worse once you’re home.”
Se por acaso estou a dar a impressão de que “I’m Thinking of Ending Things” é uma armadilha espalhafatosa e pretensiosa, não é.
É um filme tão engraçado e assustador quanto precisa de ser. É um Kaufman no topo do seu jogo, a disparar em todos as direções.
O elenco dá vida a todas estas sensações, com o desajeitado Jake de Plemons, e Collette e Thewlis, os pais que parecem envelhecer muitos anos no espaço de uma noite. São ambos tremendamente sublimes.
Mas é Buckley, que deu vida a Lyudmilla Ignatenko em “Chernobyl”, na frente e no centro de quase todas as cenas, que impressiona verdadeiramente.
Existem tantos mistérios, grandes e pequenos, ao longo deste filme. Kaufman quer que não tenhamos receio de participar nestas armadilhas, mas mais precisamente, quer que sintamos as dúvidas, a angústia, a confusão, a ausência de lógica e o pavor do desconhecido, do lembrado e do esquecido.
É um ato de confiança bastante ousado.
Podemos ser céticos em relação ao que vemos. Até nos podemos apegar ao cerne emocional do que se desenrola, sem tentar dissecar todas as dicas que Kaufman apresenta ao longo do tempo.
Sobre quem é esta história, afinal? Sobre Jake? Sobre a rapariga que é um todo? Sobre alguém que imagina como será a sua velhice? Sobre alguém que imagina como seria a sua vida com outra pessoa?
A resposta pinta toda a experiência como uma tragédia.
“Ahahah. E porque nunca ia dar certo. Se pudéssemos ouvir o que vai na cabeça de quem diz que nos ama; Acabava ali.”