Em “Small Axe”, Steve McQueen conta histórias sobre a comunidade caribenha de Londres, de meados dos anos 60 a meados dos anos 80. O cineasta, vencedor do Óscar por “12 Years a Slave”, concebeu cinco obras que diferem em duração, estilo e humor, mas que abordam, em uníssono, a cultura negra britânica.
“Small Axe”, o trabalho mais recente de Steve McQueen, lida com experiências de violência, racismo sistémico e opressão. Todavia, ao mesmo tempo, os cinco episódios desta série também servem de homenagem ao quotidiano afro-britânico na forma de música, linguagem e compromisso político.
Episódio 1 – “Mangrove”
“Mangrove”, a primeira das cinco obras apresentadas em Small Axe, é incessantemente relevante e comovente. Este “episódio” retrata a história verídica dos Mangrove Nine, que foram presos por protestar contra a brutalidade policial, e que, desta feita, acabaram por ir a julgamento no Tribunal Central Criminal, mais conhecido por Old Bailey.
Steve McQueen explicou que Small Axe provém de um provérbio das Índias Ocidentais traduzido como “juntos somos fortes”. Efetivamente, “Mangrove” reforça visual e verbalmente esse ditado.
A longa-metragem (vou efetuar esta consideração visto que a obra tem mais de duas horas de duração) provoca uma sensação de esclarecimento e, ao mesmo tempo, de vergonha, porque questiona o motivo pelo qual os eventos da vida real por trás dele não fazem parte do conhecimento geral da população.
Mangrove era o nome de um restaurante (verídico) caribenho localizado em All Saints Road, Notting Hill, Londres. Inaugurado em 1968 por Frank Crichlow (aqui interpretado por Shaun Parkes), tornou-se uma referência para a comunidade local das Índias Ocidentais.
Também foi visitado por muitas celebridades, incluindo Nina Simone, Vanessa Redgrave, Diana Ross, Jimi Hendrix e Bob Marley. Por outro lado, tornou-se um íman para a discriminação racial flagrante por parte de membros da força policial de Londres.
\Numa tentativa de acabar com a discriminação e abolição da sua base comunitária, Crichlow e alguns amigos saíram às ruas num protesto pacífico em 1970, apenas para serem confrontados com agressão policial. No rescaldo dessa ação, nove homens e mulheres, conhecidos como ‘Mangrove Nine‘ – incluindo Crichlow, Altheia Jones-LeCointe (Letitia Wright), que era líder do movimento Black Panther, e o ativista Darcus Howe (Malachi Kirby) – são presos injustamente e acusados de incitamento à violência.
Por conseguinte, dá-se início a um julgamento altamente mediático em Old Bailey, onde certos réus tomam a decisão de se representarem a si próprios, o que leva a uma vitória difícil.
A linguagem, a aparência e o sentimento misturam-se harmoniosamente no filme de McQueen, ao capturar o verdadeiro espírito das Índias Ocidentais naquela rua icónica e no restaurante. Concentra-se na riqueza da cultura e na força das personalidades, em vez de se aventurar na rota visual de retratar questões sócio-económicas preocupantes da época.
Na pele de Chrichlow, Parkes é magnífico – é um trabalho magistral que retrata, com expressões de dor, algo que as palavras não têm a ousadia de focar. Este retrato do senso de compromisso do personagem com a comunidade, é enorme e dinâmico, tornando-se ainda mais intenso quando tem dúvidas sobre a sua abordagem no tribunal a meio do julgamento.
Letitia Wright, mais conhecida pela sua participação no filme “Black Panther”, brilha como um farol de esperança. Na pele de Jones-LeCointe, o seu discurso sobre a defesa da liberdade de expressão para as gerações futuras é um momento crucial.
Para um filme captado, por vezes, no momento e na ação, “Mangrove” oferece alguns momentos cinematográficos totalmente poéticos, como uma reflexão de Jones-LeCointe durante um protesto, ou até por longos e prolongados sopros num cigarro, enquanto Crichlow aguarda o que as estrelas estão a conspirar para o seu futuro.
McQueen também incorpora momentos de humor, mesmo em processos judiciais que vão agravar o absurdo das acusações. As reações do advogado de defesa, Ian Macdonald – que orienta os ‘Mangrove Nine‘ de forma hábil – são retratadas de forma divertida por Jack Lowden. Em contrapartida, é o contraste total com as reações de Sam Spruell, que retrata Frank Pulley, o líder do grupo policial racista. Este é o vilão designado da história.
“Mangrove” é um filme imperdível, despretensioso nos seus valores de produção imediatos, e que rapidamente assume a função de um tsunami na sua mensagem, especialmente no final da conclusão do juiz. McQueen também tornou esta mensagem universal, inclusiva e revolucionária para qualquer cinéfilo.
Nota – 10/10
Episódio 2 – “Lovers Rock”
“Lovers Rock” é como sair à noite (já nem lembramos bem desse conceito), e “existir”, por si só, até que o estabelecimento encerre.
Existe diálogo, mas de alguma forma não se disse nada. Até se bebe alguma coisa, mas, de certa maneira, a bebedeira é irrelevante. A pista de dança é preenchida, não obstante, são muito poucos os que entram verdadeiramente dentro do ritmo. O que diz muito, já que a representação, sem diálogo, de pessoas a dançar, engloba cerca de 70% do tempo de execução deste episódio.
Não existe uma história realmente concreta. Em vez disso, há uma representação instantânea de uma festa numa casa, em Londres, em torno da comunidade das Índias Ocidentais.
A protagonista é Marta, de Amarah-Jae St. Aubyn, uma rapariga de dezassete anos pronta para dançar, longe da confusão que vive em casa. Na festa, Marta conhece o jovem Franklin, e ambos passam a noite juntos – com todo o entusiasmo dos dois adolescentes ao encontrar alguém para trocar alguns beijos.
Apesar de, a meu ver, não atingir minimamente o nível de qualidade de “Mangrove”, esta representação de Steve McQueen da Londres dos anos 80, é autêntica e romântica. É carregada pelo nível impressionante de detalhes da época vivida, mas também por uma energia e uma sensação de prazer.
Impulsionada por uma banda sonora magistral que vai de Soul a Disco, a série explora uma das melhores partes das vidas normais dos personagens.
O mais importante em “Lovers Rock”, é que, tal como no restaurante de Frank Chrichlow, as pessoas exaltam o heroísmo por meio da mera existência. Por ter um espaço para curtir a cultura e a sua comunidade. Eles não precisam de enfrentar rusgas policiais ou desafiar multidões para terem valor. Eles têm valor em si mesmos.
Contudo, valor humano não é o mesmo que valor narrativo e, sem história ou personagens para nos ligar aos acontecimentos, é impossível existir uma reação emocional. Certamente, as coisas acontecem durante a noite.
O romance morno de Marta e Franklin desenvolve-se enquanto dançam e partilham uma bebida ocasional, ao culminar na promessa de algo mais sério quando emergem para a luz do dia.
Mesmo os acontecimentos de menor calibre não nos dão tempo suficiente para investir nos personagens, e para nos relacionarmos com as suas frustrações e constrangimentos.
Nota – 7/10
Episódio 3 – “Red, White and Blue”
O terceiro dos cinco capítulos de “Small Axe”, é ambientado no passado recente e, mais uma vez, parece que está a falar sobre hoje e amanhã.
“Red, White and Blue” é protagonizado por John Boyega, que dá vida a um idealista no início dos anos 1980. O jovem pensa que pode melhorar um departamento da polícia por dentro, apenas para aprender da maneira mais difícil que reestruturar não é um processo fácil.
Uma disparidade ainda maior ganha forma neste filme biográfico sobre Leroy Logan, que se tornou um dos primeiros policias negros de Londres na década de 80, para grande desgosto do pai, que considera a ideia totalmente impensável.
Hospitalizado devido ao ataque de dois policias, que o agrediram injustamente, Ken não tem nada além de animosidade em relação à polícia. Por conseguinte, não fica muito feliz quando o filho anuncia que foi aceite na academia da polícia em Hendon. Leroy tenta explicar que está motivado a mudar as atitudes da polícia, mas o pai só consegue sentir traição.
Leroy conquista a admiração e o respeito dos treinadores e dos colegas recrutas. O jovem é o único rosto negro na delegacia, e os colegas oficiais e superiores esforçam-se para que ele nunca se esqueça disso, até mesmo ao rabiscar calúnias raciais no seu armário.
Nas ruas, Leroy sofre abusos semelhantes na própria comunidade, que rejeita as suas tentativas de construir pontes entre o “Preto” e o “Azul”. Mas, tal como clarifica aos treinadores na academia, Leroy não quer fazer amigos e mantém-se firme contra os racistas.
Boyega está hipnotizado por este que é, para mim, o melhor papel da sua carreira até ao momento. Leroy é desmesuradamente carismático, ao carregar o peso de uma comunidade inteira sobre os ombros, mas também ao apreciar momentos longe do stress do seu trabalho, como quando dança ao som do último sucesso do amigo Leee John.
Da mesma forma, “Red, White and Blue” é uma peça que exige que McQueen faça cenas que oscilem entre a ternura e a tensão, e ele fá-lo com a habilidade económica pela qual se tornou conhecido. O momento mais tocante do filme, é quando a câmara permanece no banco de trás de um carro enquanto observa a reconciliação entre Leroy e o pai.
Por último, McQueen não pretende colocar um ponto final de maneira organizada, mas deixar-nos num estado de frustração, ao equacionar o futuro de Logan. Esta ambiguidade pode funcionar para um protagonista fictício, mas, provavelmente, muitos terão a curiosidade de investigar mais sobre a história deste homem.
Nota – 9/10
Episódio 4 – “Alex Wheatle”
Eu não sabia absolutamente nada acerca do escritor britânico Alex Wheatle, quando comecei a ver este quarto episódio de ‘Small Axe’. Sessenta e seis minutos depois, ainda não sabia muito sobre Wheatle.
“Alex Wheatle”, o primeiro passo em falso no compêndio impressionante de McQueen, oferece pouco mais do que uma visão geral apressada acerca da juventude do autor.
Para começar, Wheatle (Sheyi Cole) surge a cumprir uma pena curta de prisão. Foi a consequência da sua participação nos distúrbios de Brixton em 1981. Na prisão, conhece Simeon (Robbie Gee), um Rastafari que vai prestar-lhe alguns ensinamentos para canalizar a frustração a partir da leitura e do auto-didatismo.
Por meio de flashbacks, vemos Wheatle (Asad-Shareef Muhammad) num orfanato parecido com uma prisão, onde é intimidado por supervisores adultos e por crianças predominantemente brancas. Ao completar 18 anos, é transferido da zona rural de Surrey para o bairro londrino de Brixton. Tendo passado toda a vida a destacar-se por causa da cor da pele, passa a destacar-se – no bairro predominantemente negro – porque fala e age como um rapaz branco de classe média.
Wheatle conhece Dennis (Jonathan Jules), um jamaicano que ensina o jovem a encaixar-se no seu novo ambiente. A relação entre Wheatle e Dennis lembra, em grande parte, a que havia entre o personagem ingénuo de Jon Voight e o nova-iorquino modesto de Dustin Hoffman em “Midnight Cowboy”. No início, Dennis explora a inocência de Wheatle, mas, posteriormente, passam a partilhar uma amizade genuína.
Com pouco mais de uma hora de duração, e a terminar antes de Wheatle conseguir sentar-se à máquina de escrever, o filme de McQueen parece mais o primeiro ato de um filme biográfico mais aprofundado do que um filme independente.
“Alex Wheatle” é o primeiro deste conjunto de episódios que parece ter sido feito especificamente para televisão. O episódio depende de discursos de personagens secundários, que tentam ensinar o personagem-título a destacar-se. Na condição de filme biográfico de uma figura literária, acaba por ser literal demais na sua narrativa, e, desta feita, um dos pontos mais fracos na carreira de McQueen.
Nota – 6/10
Episódio 5 – “Education”
“Small Axe” termina com “Education”. Embora não seja baseada numa história verídica singular como “Mangrove”, “Red White and Blue” ou “Alex Wheatle”, este “Education” é uma história de amadurecimento sobre uma tendência histórica na Inglaterra para as crianças das Índias Ocidentais serem encaminhadas para o equivalente à “educação especial”.
É parte do sistema de classes implacável da Grã-Bretanha e da desigualdade racial enfrentada pelos imigrantes das Índias Ocidentais, que chegaram ao país nas décadas de 1960 e 1970.
“Education” é baseado, em parte, nas experiências pessoais de McQueen. Tal como “Lovers Rock”, não inclui nenhum conflito importante entre os cidadãos e as autoridades. O episódio, que dura pouco mais de uma hora, aborda a vida de um rapaz de 12 anos chamado Kingsley (Kenyah Sandy), bem como as injustiças que vive para receber educação.
É um assunto muito interessante e que tem sido pouco tratado no cinema. McQueen afirmou que o personagem central tem muito de si mesmo. É, portanto, uma história íntima e pessoal que nos fala sobre a necessidade de educação para a igualdade de oportunidades. É algo que também surgiu no episódio anterior.
Devido à curta duração, existe muito tempo perdido em cenas que não contribuem assim tanto, como aquela em que um dos “professores” da educação especial canta “The House of the Rising Sun” dos The Animals.
Para combater a injustiça que privou os alunos negros de uma educação completa, o cineasta volta falar-nos sobre o sentimento da comunidade. Foram organizadas escolas improvisadas do Black Saturday, onde voluntários afro-caribenhos ofereciam aulas suplementares aos fins de semana em igrejas e centros sociais para reforçar e complementar a educação que as crianças negras não estavam a receber.
Em particular, aproveitavam essas ocasiões para ensinar e difundir a própria cultura entre as crianças, para que ele não fosse esquecida. Desta forma, o livro “Kings and Queens of Africa for Children” é mostrado como exemplo. É o sistema de transferência de conhecimento mais antigo do mundo e que nenhuma escola pode substituir, aquele que é passado de geração em geração, de pais para filhos.
Outra parte importante da história é a família. No início, vemos crianças com os mesmos sonhos de qualquer outra criança de Londres. O protagonista quer ser astronauta e viajar para o espaço, enquanto que a irmã gostaria de ser estilista e ir para Paris.
Os pais trabalham o dia todo e não podem dar-lhes a atenção que precisam. No entanto, existe um nexo comum que os une de forma profunda. Por isso, quando a mãe descobre o que estão a fazer com Kingsley, aborda a questão com outros membros da comunidade negra que estão a sofrer da mesma negligência educacional.
As cenas em que o jovem começa a ler à frente dos pais são muito comoventes. Na primeira, quase não consegue articular as palavras, enquanto que na segunda lê fluentemente sobre Amina de Zaria, uma guerreira que se tornou rainha.
“Education” é um episódio que funciona mais por todo o fundo emocional do que pela forma como é contado. Sim, o começo e o final com imagens do universo vistas pelos olhos curiosos do protagonista, é um sucesso. Existe um mundo inteiro para conquistar, e ninguém tem o direito de privar o outro de receber oportunidades ou de fazer o que quer que seja.
Nota – 8/10
A obra mais famosa de Steve McQueen talvez seja “12 Years a Slave”, que eu considerei um filme de mainstream bastante comum, que se distingue apenas pelo assunto que aborda.
Com “Small Axe”, McQueen criou uma série de histórias emocionantes e envolventes sobre a experiência negra na Grã-Bretanha. Ele é incrível em cenários de casos judiciais, mas acima de tudo, é brilhante a transmitir a psicologia de vidas vividas em ambientes de racismo sistémico.
Os cinco episódios podem ser vistos autonomamente, no entanto, garanto que vale a pena completar o ciclo. Tal como “Dekalog” de Krzysztof Kieslowski, por exemplo, o impacto coletivo é maior do que a soma das partes.
Existem falhas, sim. Porém, os problemas não conseguem privar o público de sentir a representação da obra, que desliza por baixo da pele e toma conta do coração. “Small Axe” representa a beleza do que se pode fazer em cinema e, neste caso, na televisão, não apenas através da reflexão sobre a experiência negra, mas no êxtase que vem quando aceitamos que a nossa alma entre em contacto pleno com o mundo ao nosso redor.