Baseado na obra de ficção científica de Frank Herbert, “Dune” apresenta-nos a jornada de Paul Atreides, herói arquétipo, um jovem destinado a grandes feitos. Para garantir o futuro da sua família e do seu povo, Paul terá de viajar até ao planeta mais perigoso do universo, enfrentando os conflitos decorrentes da luta por uma substância extremamente valiosa. Uma odisseia em que apenas os mais corajosos poderão sobreviver.
Considerada por muitos como A Bíblia da ficção científica, “Dune” teve uma influência inevitável sobre toda uma geração de fãs do género que viram na criação deste universo um ponto de referência absoluto. O cenário no planeta deserto Arrakis, as intrigas do poder, o futurismo apocalíptico e o eco de um Messias chamado a restaurar a paz, são temas que se instalaram nas mentes dos leitores.
O primeiro a tentar adaptar a obra de Frank Herbert (cuja publicação data de 1965), foi um dos maiores anarquistas da história da sétima arte, Alejandro Jodorowsky. O projeto, que não chegou a bom porto devido à relutância daqueles que o deveriam ter produzido, foi tão ambicioso quanto louco: combinou as linhas narrativas do romance de Herbert com uma série de sugestões visuais e psicadélicas, utilizando uma banda sonora progressiva e nomes de referência tanto para o storyboard (R.R. Giger, Douglas Trumbull e Dan O’Bannon) como para o casting (Salvador Dalí, Orson Welles, Mick Jagger e Amanda Lear, só para enumerar apenas alguns)
Mais tarde, a nova tentativa de transportar “Dune” para o grande ecrã deu-se com a investida de um Ridley Scott muito jovem, que, posteriormente, acabaria por ceder o lugar a David Lynch, que escreveu o argumento juntamente com o próprio Herbert. Não obstante, o filme acabou por revelar-se imperfeito e mutilado, visto que não exprimiu plenamente o talento do realizador, apesar de alguns momentos visionários. Efetivamente, David Lynch teve dificuldade em condensar todo aquele mundo num único filme e, como consequência, fez algumas pausas narrativas que afetaram a compreensão geral da sua adaptação (especialmente na parte final).
A adaptação de Denis Villeneuve surge, portanto, acompanhada de muitas expectativas e igual número de receios. À sua maneira, com as devidas proporções, “Dune” está para a ficção científica como “Dom Quixote” está para o género cavalheiresco. Dois romances “amaldiçoados” que atraíram o interesse de cineastas importantes, mas que resultaram quase sempre em projetos cinematográficos mal sucedidos. Depois de tentar a sorte com “Arrival” e, posteriormente, com “Blade Runner 2049”, Villeneuve elevou a fasquia, ao desafiar a “lenda”. Claro que não foi fácil dar sequência a um marco do cinema de ficção científica, mas é ainda mais ousado tentar adaptar uma obra que se tornou uma espécie de calvário para outro grande realizador.
À primeira vista, Denis Villeneuve trabalha de forma diferente de Lynch, antes de tudo por escolher, deliberadamente, apostar no desenvolvimento temporal do romance. Isto porque, no seu “Dune”, percebemos explicitamente que se trata da primeira parte de um díptico. Obviamente, isso afeta a compreensão do enredo: esta adaptação é muito mais clara, linear e preenche aquelas lacunas narrativas que geraram estranheza na obra de Lynch.
Visualmente, a abordagem de Villeneuve é mais sombria e, ao mesmo tempo, mais humanista. O cineasta usa principalmente cores mais escuras e frias, criando um contraponto com um ambiente desértico como o de Arrakis. É interessante analisar estas diferenças na representação do Universo. Se Lynch é um autor que tende a usar a obra para o seu cosmos interior, Villeneuve tem uma capacidade de adaptação que o leva a expandir-se para outros géneros, estilos e visões. Por isso, este “Dune” consegue ser, ao mesmo tempo, uma boa transposição do romance e mais um passo em frente na sua excelente carreira de realizador.
Tudo isto sem esquecer o fator humano, que é o motor imóvel da história: nenhum personagem permanece isolado, ou seja, estão todos ligados à história, numa teia tão densa e tão vasta que a perdemos de vista. É evidente, na leitura de Villeneuve, o desejo de permanecer fiel ao quadro cultural original: a história gira em torno da ideia de um Messias há muito esperado, que, no entanto, traz dentro de si uma humanidade pouco madura e, acima de tudo, pesada por objetivos pessoais ligados a dinâmicas políticas e sociais.
Timothée Chalamet parece perfeito para o tipo de papel que está a ser construído ao seu redor. Paul Atreides é mais vulnerável e duvidoso (ao sofrer pelo status de “escolhido”) do que o personagem interpretado por Kyle MacLachlan na versão de Lynch. Lady Jessica concede mais nuances a Rebecca Ferguson, tal como Chani Kynes – na pele de Zendaya – que é apresentada com uma inspiração épica que delineia um protagonismo absoluto em termos narrativos (e que certamente será desenvolvido na segunda parte).
“Dune” exalta uma ideia precisa sobre a manipulação do poder, a dinâmica dos movimentos de massas, a busca da identidade através do crescimento espiritual, e, como todos estes tópicos estão intimamente interligados, podemos concluir que não poderiam ser mais atuais.
Paul tem referências objetivas não na religião judaica ou cristã, mas no Islão. A personagem conduz o seu povo à vitória não através da paz ou do ensino, mas através da jihad. E o jogo de referências não acaba aqui, porque, no filme, os Fremen do deserto não podem deixar de trazer à memória os povos árabes que no final dos anos 60 lutaram contra as multinacionais pelo controlo e exploração dos campos petrolíferos.
Com tudo isto dito, existe apenas uma crítica negativa que pode sobressair. A sede de Villeneuve por uma sequela, torna o filme um pouco longo demais. “Dune” apresenta tantos detalhes na primeira metade, que todo o enredo é empurrado para a segunda. Alguns espetadores podem hesitar com o facto de terem de ser comprometer com mais uma franquia, mas, para outros (não só mas também para os apelidados de Duneheads), acredito que seja apenas o começo do que poderá ser a saga épica de ficção científica que se esperava.
Menos ou mais apressado, trata-se de uma obra imaginativa, densa, cheia de sugestões visuais, imbuída de uma obscuridade densa e enigmática, visto que faz fluir subsequentemente correntes filosóficas, ao criar um curto-circuito magnético de significado que é tão fascinante como perturbador.
Em conclusão, Denis Villeneuve é capaz de moldar – moldando-se a si mesmo – universos narrativos nos quais a componente humana se torna preeminente. Atrás do cobertor do espetáculo como um fim em si mesmo, emerge um coração a bater que move o público para o envolvimento emocional. Um filme ambicioso, talvez até demasiado majestoso, mas que consegue comunicar a grandiosidade de uma obra intemporal.