Atrás das câmaras, a primeira canção do cisne de Clint Eastwood foi “Unforgiven”, um Western sombrio e amargo que se despedia do género que o tinha tornado famoso. Desde aí, Eastwood realizou mais 23 filmes, protagonizando 10 deles. Em obras como “Space Cowboys”, “Blood Work”, “Gran Torino” e “The Mule”, retratou exemplares do ideal masculino de uma geração anterior que estava a lutar para compreender o seu lugar num novo mundo. Mas “Cry Macho” marca a primeira vez, desde 1992, que o cineasta regressa, de facto, à sela.
Na condição de realizador, a carreira de Clint Eastwood representa um reflexo preciso da sua configuração como ícone cultural: sóbrio, estóico, simples, poético e ideologicamente contraditório. Desde a sua estreia em 1971, com “Play Misty for Me”, passando pelos seus trabalhos mais notáveis, como “Million Dollar Baby” (2004) e “Gran Torino” (2008), o Man with No Name marcou também uma posição muito clara atrás das câmaras.
A plasticidade narrativa de Eastwood, juntamente com a exploração da moralidade e melancolia, são aspetos inegáveis do seu cinema e foram registados em obras como “Unforgiven” (1992), em que denuncia as raízes dos Estados Unidos enquanto homenageia o género que o viu crescer na indústria, e “Letters from Iwo Jima” (2006), a sua história de guerra mais crua e mais contundente.
Um artista incomensurável que, aos 91 anos de idade, tem a ousadia de abrir novamente o jogo. “Cry Macho” foi uma proposta que, originalmente, chegou às mãos do cineasta para adaptação em 1988, mas, por várias razões em torno dos direitos, só agora é que viu a luz do dia.
O filme reúne Eastwood com Nick Schenk, argumentista do célebre “Gran Torino” e “The Mule” (2018), numa história de redenção que reflete a passagem do tempo, a ideia tradicional de masculinidade e o choque de gerações.
Baseado na obra homónima de N. Richard Nash, o filme é ambientado em 1975 e apresenta Mike Milo (Clint Eastwood), uma antiga estrela dos “rodeos” com um passado familiar doloroso que se torna, entretanto, criador de cavalos. O dia-a-dia imparável de Mike é totalmente virado do avesso quando o seu antigo chefe (Dwight Yoakam) lhe pede ajuda para resgatar o filho, um rapaz de 13 anos chamado Rafo (Eduardo Minett de “The Guadalupe Rose”). Neste tipo de operação de salvamento, o protagonista vai enfrentar não só as forças policiais da fronteira, visto que é uma viagem entre o Texas e o México, mas também a mãe do jovem (Fernanda Urrejola), que não pretende ceder o filho (apesar de toda a negligência), e os vários capangas.
Quando fogem de cidade em cidade numa carrinha, Mike e Rafo constroem uma amizade improvável na qual os traços típicos associados ao conceito de “Macho” vêm à ribalta. Guardado pela fiel mascote de Rafo – um galo lutador batizado, redundantemente, com o nome de Macho – a dupla partilha os seus conhecimentos e ansiedades da vida quotidiana.
Mais uma vez, Clint Eastwood faz a sua própria personagem que corresponde ao protótipo que representou nos últimos anos. Um tipo duro, com memórias tempestuosas, que defende o que acredita ser correto e que não tem escrúpulos em expor os seus preconceitos raciais ou misóginos. Neste sentido, não é coincidência que tenha esperado tanto tempo para poder fazer este filme e ter idade suficiente para ver o mundo através dos mesmos olhos que a personagem do livro.
Através de uma narrativa clássica, de belos planos entrelaçados e da sua habitual economia de diálogo, o realizador leva o público numa viagem semelhante a um road movie pelos vários lugares que os dois personagens descobrem. A banda sonora, com o conhecido bolero Sabor a Mí a tocar nas ocasiões em que a personagem de Mike se envolve numa terna relação com Marta (Natalia Traven), a dona de um bar, faculta um toque doce à história. Obviamente, não faltam os momentos típicos de tensão e violência em que Eastwood parece fazer escárnio dos clichés do género ocidental como já sucedeu anteriormente em outras das suas obras.
“Pensa-se que se tem todas as respostas, depois percebe-se que à medida que se envelhece não se tem nenhuma”, diz Mike ao jovem Rafo, num dos seus muitos monólogos que ruminam sobre o passado. É visível que este tipo de narração sentimental está impregnado em “Cry Macho”, e essa franqueza não funcionaria nas mãos da maioria. Mas desde “Play Misty for Me”, que foi lançado há 50 anos, Eastwood tende para a franqueza, lançando um olhar calvo sobre a sua carreira enquanto conta a história de um homem que ainda tem mais a aprender.
Mas para além do classicismo do enredo e do humanismo que Eastwood capta em cada uma das suas histórias, “Cry Macho” cativa (pelo menos, cativou-me nesse sentido) pela essência do cinema artesanal, de um filme fora do tempo que não precisa de um punhado de referências culturais a cada dois minutos para gerar nostalgia. É um filme que nos leva de volta a uma época que parece cognoscível mesmo para as gerações mais jovens, às quais a vontade de perseguir o produto popular do dia continua, em grande medida, a dificultar uma ligação com o cinema a partir de um lugar muito mais profundo e paciente.
É mais uma despedida despretensiosa e melancólica de um realizador e ator que, supostamente, se tem vindo a retirar do ecrã nos últimos 30 anos.