Todos os anos a indústria abraça vários projetos dentro daquilo que se considera as cine-biografias (biopics), que vão desde figuras histórias a celebridades eminentes. Um dos grandes pontos fora da curva (senão o maior) da atualidade chegou, pelas mãos do realizador Todd Field, no ano passado. Esta longa-metragem foi pensada e construída precisamente nos mesmos moldes de uma convencional cine-biografia, os elementos mais importantes estão cá todos: narrativa centrada na vida, contada na primeira pessoa, de uma dada figura e a procura pela presença de eventos, curiosidades e factos marcantes, que se interligam com a realidade.
Até antes de terminar a minha experiência com Tár era esta a ideia que tinha, de que a sua protagonista Lydia Tár, interpretada por Cate Blanchett, era uma pessoa real e da qual o filme exibia sob o formato de recortes, mais ou menos próximos dos factos, um período crítico da vida da aclamada maestrina. Não precisou de muito tempo, após o visionamento para chegar à conclusão de que Lydia Tár é, na verdade, uma personagem fictícia criada dentro de uma espécie de mockumentary que se leva bastante a sério. E não fui o único, pela internet enchem-se os meios que rapidamente dão conta da tamanha ilusão que o filme desencadeou a uma parte da audiência.
Este ponto é bastante crucial para entender o trunfo da longa-metragem. Durante toda a experiência somos levados a crer que Lydia existe fora e dentro do grande ecrã. Com efeito, os primeiros minutos foram essenciais para captar o retrato geral de quem é esta personagem, uma vez que o espectador é bombardeado com uma enchente de informações pessoais e profissionais daquela que veio a ser a primeira mulher ao serviço da orquestra filarmónica de Berlim. Mas também das pessoas que marcam as suas relações interpessoais: Francesca (Noémie Merlant) a sua assistente pessoal com a qual estabelece uma relação de dominância e disciplina e Sharon (Nina Hoss) a sua esposa reservada, primeira violinista da orquestra.
Estas duas personagens são os principais pesos de moralidade naquela que é a complexa turbulência de sensações e vivências da protagonista. A direção de elenco, por parte de Todd Field, não se apega apenas aos eventos macro para caracterizá-la, é sobretudo nas pequenas nuances, nos mínimos detalhes e maneirismos que Lydia vai crescendo em profundidade com o espectador. A sua sensibilidade auditiva, para lá de verossímil com o facto de se tratar de alguém musicalmente talentosa, vai e volta ao longo do filme, como uma espécie de inquietação e assombração do seu passado. Algo que ganha, sem entrar em muitos spoilers, um significado maior e simbólico perto do clímax narrativo.
Voltando um pouco ao meu ponto inicial, a realização emula um espírito de pseudo documentário de Lydia Tár, mas será isso um fim em si mesmo, ou existirá algo a mais aqui? Efetivamente, Tár é uma longa-metragem nos moldes de um clássico estudo de personagem, que ressurgiu em relevância nos últimos anos (The Favourite, 2019; Spencer, 2021), por isso é natural que a personagem em si, é apresentada de alguma forma calamitosa e que consigo traz um espaço de reflexão após o visionamento. A narrativa é também sobreposta em temáticas atuais, como a cultura do cancelamento, a qual é abordada de forma pertinente e bastante assertiva, bem como as relações e dinâmicas de (abuso) poder em contexto profissional.
Um estudo de personagem é por isso uma boa oportunidade para interrogar a audiência expondo-as a uma potencial introspeção de si mesmos. Alguns eventos da história são relevantes no que toca a trazer ao de cima estes temas. Face à chegada de uma nova integrante na orquestra de nome Olga (Sophie Kauer) uma violoncelista russa, embora dotada de enorme aptidão, vê-se no meio de um jogo de poder entre a responsabilidade e rigor ético e os desejos mais carnais da protagonista. Exemplos como este, introduzem-nos aos inúmeros pontos de rotura narrativos aqui presentes, onde vemos as reações e repercussões de Lydia face a tais escolhas. E no fatídico rumo que tal a irá levar.
O realizador não se impõe no filme como pêndulo moral, em nos dizer o que é certo ou errado, é muito menos intervencionista do aquilo que esperamos ver numa longa-metragem com um bom número de temáticas controversas. É certo que esta opção, por parte do realizador, faz com que o terceiro ato da história esteja assim aberto a várias discussões, afinal é um estudo de personagem que estamos a lidar, um retrato próximo da realidade e as suas respetivas nuances. Uma decisão que consigo desmedidamente acertada, colocando no público o papel de juiz daquilo que terminaram de testemunhar.
Todo este trabalho de realismo que tanto faço questão de enfatizar só foi possível graças a Cate Blanchett, cuja qualidade da produção envolvida depende em boa parte, naquela que possivelmente é a sua melhor atuação da sua já extensa carreira de atriz. Em Tár, não vi Blanchett, apenas a Lydia, uma das personagens mais bem escritas de que tenho memória dos últimos tempos, uma que dificilmente irei esquecer tão cedo. Afinal é, pois, árduo não nos deixarmos resistir em mergulhar na mentira escapista do realizador, em acreditar e nos mover com a jornada trágica da maestrina. Se algum aspeto merece total reconhecimento e aclamação é, tal como referi, a atuação.
Relativamente aos aspetos técnicos, estes contam com uma direção de fotografia competente que faz o seu trabalho, mas que contudo fica eclipsado pelo departamento sonoro, não sendo uma total surpresa, tratando-se deste filme uma peça dentro e em torno do universo da música. Um tipo de abordagem com grande incidência musical como esta faz lembrar casos como o de Sound of Metal (2019), em que a audição para além de servir enquanto parte do argumento é também uma subcamada que nos permite entender melhor o protagonista, no caso, Lydia e os tiques e comportamentos obsessivos compulsivos.
É difícil não olhar para os últimos três anos de filmes e não notar que Tár se destaca imensamente nesta ainda jovem década como um dos momentos mais altos. As interrogações que levanta a partir de um estudo de personagem bem trabalhado e oportuno, aliado a uma atuação de luxo por parte da interpretação de Cate Blanchett, digna de Óscar, fazem com que seja ainda mais difícil não deixar de recomendar Tár. Se até aqui não ficaram convencidos, talvez o saudosismo por obras semelhantes como Black Swan (2010) ou Whiplash (2014), vos faça dar uma chance àquele que considero como a longa-metragem mais conseguida do ano que passou.