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Spiral: Mudança, evolução e progresso

by João Pedro

Criada por James Wan e Leigh Whannell, nomes que também deixaram um marco pessoal em obras como “Insidious, “The Conjuring” ou “Upgrade”, a franquia “Saw” teve origem em 2004. Era o começo de uma epopeia de punição excessivamente gráfica, que recebeu várias sequelas e que, desta feita, passou por trocas e baldrocas. 

O presente artigo contém spoilers de “Spiral”

Os filmes seguem as façanhas de um serial killer chamado John Kramer, também conhecido como Jigsaw (interpretado por Tobin Bell), e dos vários cúmplices que vai arrecadando ao longo do tempo. As suas vítimas são colocadas em armadilhas elaboradas e mortais, destinadas a testar a vontade de viver.

Conforme os filmes iam sendo lançados, atraíam alguma repulsa devido ao tom implacável e, é claro, às representações dolorosas de extrema violência. A franquia quase deu origem ao termo polémico “pornografia de tortura”, que rotulou os filmes de “Saw” (entre outros, como “Hostel” ou “The Human Centipede”), como objetos de trabalho puramente sádicos.

Se esta é uma descrição justa ? Bom, aí já será motivo de debate e depende do filme que estamos a ver. Além do vasto leque de armadilhas, a saga também incorpora elementos principais de thrillers (o filme original evoca muito do trabalho de David Fincher), procedimentos policiais e é quase como uma novela na forma como revela um novo assassino ou um personagem de volta dos mortos, com os seus fios de histórias interminavelmente entrelaçados.

“Spiral: From the Book of Saw”, o nono filme da franquia, regressa às raízes do original, ao adotar, antes de mais nada, a postura de thriller. Efetivamente, utiliza as suas armadilhas terríveis com moderação, e, em contrapartida, apresenta os personagens de forma coesa para que nos possamos importar com o seu destino.

Ainda segue a fórmula testada e comprovada de “Saw” – as personagens enfrentam testes de tortura, a polícia tenta descobrir quem está por de trás dos homicídios e há reviravoltas – por conseguinte, e embora seja definitivamente familiar, existem vários fatores que empregam frescura nesta abordagem. “Spiral” leva a história por um caminho novo e atraente.

Com a assinatura de Darren Lynn Bousman na realização, o conceito do filme foi uma ideia de Chris Rock, que dá vida ao detetive Zeke Banks, um polícia desiludido e narcisista. Certa noite, Boz (Dan Petronijevic), um dos seus colegas, é atraído para uma armadilha horrível, num ato quase idêntico aos homicídios do Jigsaw. Juntamente com William ( Max Minghella, de “The Handmaid’s Tale”), o seu novo colega, Zeke investiga o caso. A dada altura, começam a surgir mais corpos e, rapidamente, surge um padrão: o assassino está à caça de policias corruptos.

“Spiral” não encobre os crimes destes agentes da autoridade. São pessoas genuinamente más que têm abusado do poder, mentem em tribunal para acusar pessoas inocentes e até conseguem prejudicar colegas de trabalho. Zeke é um dos prejudicados. O jovem tornou-se conhecido no departamento por entregar o antigo parceiro devido a um ato desprezível, e isso levou a que muitos polícias decidissem prejudicá-lo. A partir daí, Zeke passou a não confiar em ninguém. Não obstante, cimentou outra ferida emocional de ter que viver na sombra do pai, Marcus (Samuel L. Jackson), que dirigiu o departamento no passado.

© pris.pt

Este filme foi feito algum tempo antes dos protestos históricos e contínuos contra a brutalidade policial (foi programado para ser lançado em maio de 2020, mas foi adiado devido à COVID-19), mas, agora, ressoa com mais ímpeto do que nunca. Zeke luta para descobrir quem anda à caça do seu departamento, ao mesmo tempo que recorda múltiplos atos corruptos que testemunhou e, inclusive, de que foi vítima.

“Spiral” assemelha-se, em parte, a “Saw VI” de Kevin Greutert, na forma como dá significado a este processo. Jigsaw foi atrás de pessoas más nos filmes anteriores, como assassinos, violadores e ladrões, mas também matou pessoas de quem tinha apenas rancor pessoal.

“Saw VI” tinha o chefe de uma agência de seguros saúde e os seus associados presos nas armadilhas infernais daquela época, e destacou as imoralidades do sistema de saúde do país da mesma forma que “Spiral” aborda os problemas em torno da polícia. No filme, surge a nota das estatísticas sobre como os policias têm os maiores índices de divórcio, violência doméstica e suicídio, e a tentativa de Zeke de ser um “bom polícia” e reformar o departamento de dentro para fora, apenas para ser punido por isso, é muito real.

Felizmente, ninguém precisa de ver os filmes anteriores ou conhecer as suas histórias para perceber “Spiral”. A longa-metragem apresenta uma história quase inteiramente nova, que não sente a necessidade de confiar muito na nostalgia e em retrocessos preguiçosos do que veio anteriormente, como acontece com outros reboots.

O novo elenco é, a meu ver, uma lufada de ar fresco, que traz alguma leviandade necessária e muitos momentos genuinamente cómicos. A comédia nunca é arrogante nem afasta o horror das cenas quando é necessário, o que nem sempre é fácil de concretizar.

Contudo, por mais que “Spiral” consiga revitalizar a saga de várias maneiras (pelo menos, na minha opinião), também cai ocasionalmente em algumas “armadilhas” dos outros filmes, nomeadamente em alguns clichés que surgem nos diálogos. Em adição, o final luta para ser tão satisfatório ou conclusivo quanto deveria (apesar de algumas reviravoltas bastante sólidas), e alguns tópicos do enredo – como a deterioração do estado mental de Zeke quando todos ao seu redor começam a morrer – não levam a nada significativo.

Ainda assim, para cada escorregadela, o filme consegue dar dois passos à frente. As cenas têm um ritmo muito bom, com a realização de Bousman a assumir uma disposição segura. Juntamente com Jordan Oram (cujo trabalho anterior inclui vários videoclipes de Drake), abraçam a estética suja de “Saw”, mas não têm medo de explorar um novo território. O mesmo pode ser dito em relação à banda sonora, que combina o trabalho distinto de Charlie Clouser com faixas de hip-hop.

Chris Rock oferece o seu sentido de humor natural desde o momento em que é apresentado (especialmente na referência a “Forrest Gump”). Todavia, é relevante frisar que “Spiral” não é (de todo) uma comédia de terror, mas oferece mais leviandade do que os filmes anteriores de “Saw”.

O comentário social sobre a corrupção policial é bem-vindo, já que as investidas de Jigsaw tornaram-se cada vez mais confusos à medida que a franquia continuava. A máscara de porco também regressa, agora com um duplo significado para insultar a polícia, e o assassino utiliza uma marioneta porco no lugar do icónico Billy.

Tal como um personagem refere durante o filme, spiral é um símbolo de mudança, evolução e progresso. Embora não faça muito em termos de expansão da mitologia, “Spiral” é um novo regresso à forma que revigora a franquia adormecida ao mesmo tempo que homenageia um legado. De forma inegável, é empolgante ver a interação de Rock e Jackson no mundo de Jigsaw, mesmo que o enredo seja ocasionalmente servil às convenções estabelecidas. Por fim, ficaria satisfeito se “Spiral” apresentasse mais jogos no futuro. Acredito que sim.

Do you wanna play a game, motherfucker?

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