Apesar da fase 4 do universo cinemático da Marvel já ter começado, cabe a Shang-Chi and The Legend of the Ten Rings a hercúlea tarefa de apresentar algo verdadeiramente novo a esta saga e nada melhor do que um filme de artes marciais para tal!
Com uma narrativa simples e desprovida de qualquer tipo de complexidade, Shang-Chi (Simu Liu) é, desde tenra idade, treinado pelo pai, o poderoso Wenwu (Tony Leung Chiu-wai) que através dos superpoderes providos pelos badalados dez anéis é imortal e com uma força capaz de derrotar qualquer exército que lhe fizesse frente. Quando Shang-Chi tem a primeira oportunidade de sair do exército do pai, este foge em busca de uma vida pacífica e mais quotidiana. Contudo, esse exército (organização dos Dez Anéis) descobre o seu paradeiro.
Logo neste aspeto, o filme destaca-se das mais recentes longas-metragens da MCU. Primeiro, já não éramos introduzidos a personagens novas há bastante tempo e segundo, e talvez o mais importante, Shang-Chi está desprovido de clichês típicos e tradicionais, ou seja, é direto e não perde muito tempo a explicar o facto de ser assim. Arrisco a dizer que conseguiu mesmo uma raridade que é unir o misticismo das artes marciais, uma vida urbana e o universo da Marvel numa simbiose quase perfeita.
Para esta simbiose muito contribui o facto de que as explicações são nos introduzidas à medida que precisamos delas no filme. O ritmo é elevado e começa logo bem cedo, e para terem uma noção, a famosa cena do autocarro acontece nos primeiros 20 minutos do filme e ainda não sabemos muito bem quem é a personagem principal e de onde vêm os seus poderes. Essas respostas são dadas a tempo certo.
As respostas em si coincidem quando o filme apresenta uma toada mais dramática e consequentemente mais lenta, mas satisfazem porque desvendam os mistérios impostos inicialmente e aí há que dar o devido valor ao realizador Destin Daniel Cretton por deixar fluir tudo sem nunca parecer demasiado forçado ou imposto. O balanço roça a perfeição e ficamos mesmo com a sensação de que as cenas de luta e os momentos mais pausados acabam quando têm que acabar.
Claro que todos estes pressupostos também só resultam pelas geniais e bem elaboradas coreografias e pela excelente fotografia e montagem das cenas, sendo que até há uma cena fortemente inspirada em 007: Skyfall ( quem não se lembra da cena de luta com Neons em pano de fundo?).
Outro dos pontos altos do filme é o casting. É notória a preparação de Simu Liu para o papel, quer fisicamente quer mentalmente, transformando Shang-Chi numa das personagens mais carismáticas que a Marvel lançou ultimamente. A acompanhá-lo nesta jornada está a sua amiga Katy (Awkwafina) e arrisco-me a dizer que a amizade entre ambos é o fio condutor de toda a narrativa. Há uma química enorme entre estes dois atores e em conjunto criam situações de humor quase genuínas e, quem sabe, improvisadas.
Xialing (Meng’er Zhang), a irmã de Shang-Chi, é também uma surpresa bastante positiva e evidencia o lado bastante acentuado de que estamos perante um “drama familiar” aligeirado pelos estandartes da Marvel. O filme consegue dar uma profundidade às personagens que faz com que o espetador goste de todas, ou pelo menos tenha curiosidade em saber o desfecho de cada uma.
A Marvel foi também cuidadosa em gravar muitas cenas na língua nativa, numa tentativa de aproximar o filme com o seu público alvo, neste caso a China, que neste momento representa uma grande fatia do mercado cinematográfico global e sobretudo é uma tentativa de separar um filme dos clichês e estereótipos que Hollywood faz, parecendo tudo natural.
Claro que para falar do elenco é necessário falar do principal antagonista. Falo de Wenwu, que se auto intitula o verdadeiro Mandarim e não aquilo que aconteceu em Iron Man 3.
Em Shang-Chi, Wenwu é a pessoa que cria a organização dos Dez Anéis e desde cedo sentimos que é uma verdadeira ameaça à paz mundial, ao contrário do seu homónimo de Iron Man 3. Mas à medida que o filme vai avançando, começamos a perceber as suas motivações e até compreendemos a sua atitude em decisões não tão famosas, o que o torna quase uma antítese ao estereótipo de vilão Marvel, onde muito provavelmente (excetuando os Avengers) quase ninguém se lembra dos vilões em detrimento do desenvolvimento dos heróis. Mas aqui é diferente, devido ao tal drama familiar, denota-se até um carinho especial por Wenwu e facilmente poderia ser mais explorado.
Isto só é possível graças ao excelente desempenho de Tony Leung Chiu-wai, onde facilmente transmite o que realmente a personagem sente, desde tristeza, luto, raiva e até alegria… ele representa e nós sentimos como se fosse genuíno.
Infelizmente o filme não é perfeito e isto, curiosamente, é quando entra o efeito Marvel na história. A batalha final deixa de lado as artes marciais a adota o estilo de guerra em campo aberto entre o bem e o mal como a Marvel já nos habituou. Não é mau mas é uma espécie de um momento anti climático em comparação com o que estava a ser criado.
Na minha opinião, um dos grandes trunfos do filme é ser quase independente do universo Marvel. Arrisco mesmo em dizer que é dos poucos filmes recentes da MCU que não necessita de conhecimento prévio. Claro que as famosas cenas pós-créditos vão ligá-lo ao universo, mas desta vez temos duas cenas, uma para a MCU e a outra para Shang-Chi 2, o que mostra o quanto a Marvel acredita neste super-herói.
Shang-Chi é um excelente filme de ação, rico em drama familiar, com personagens estranhamente profundos para a Marvel. Contudo, acho que este vai ser um filme a exemplo de Guardians Of The Galaxy, ou seja vai precisar muito que os próprios fãs o promovam.
Acredito mais que se torne um tesouro escondido do que propriamente um blockbuster e há personagens na Marvel que tiveram uma ascensão lenta como quando apareceu o Ant-Man e que neste momento é fundamental.