Saltburn – Crítica Filme

by João Pedro

“Saltburn” apresenta uma luta de classes desequilibrada, sensual e decadente, numa história que atravessa as arestas da sociedade contemporânea. O segundo filme de Emerald Fennell encena um mundo rarefeito, sociopata, onde as relações humanas são legisladas por todo o tipo de trocas – afetivas, físicas, materiais – com a sua mistura inquietante de desejo e descartabilidade.

A Universidade de Oxford é o campo de batalha onde um rapaz solitário descobre a elite. A bondade de Oliver Quick (Barry Keoghan) e a sua história de vida miserável levam-no a ser “adotado” por Felix Catton (Jacob Elordi), o fauno da instituição. Felix é tudo o que Oliver não é: popular e pornograficamente rico. A relação entre ambos é marcada pela obsessão de Oliver e pela boa consciência de Felix. Desta feita, quando Adonis convida um plebeu a passar o verão na luxuosa mansão da sua família, a mecânica do prazer entra em ação. Felix fica fascinado por Oliver, até descobrir que este novo amigo pode estar a mentir. Sobretudo sobre o seu passado.

Keoghan – um intruso em contextos familiares estranhos, tal como sucede em “The Killing of a Sacred Deer”, de Yorgos Lanthimos – tem um desempenho eletrizante, ao mesmo tempo que dá a entender que, por detrás da sua timidez, esconde-se algo doentio; Elordi, por outro lado, é magnetismo puro, uma substância despreocupada com toda a leveza de estar ao ar livre, alguém que não precisa de impor a sua presença mas tem a qualidade de uma aparição – um ser-se satisfeito, porém, com algo ligeiramente triste e vulnerável nos olhos. 

Saltburn, habitado pela família Catton, é um lugar saturado de frivolidade, passividade emocional e desconexão do mundo real. Nesta família, temos: Elsbeth (Rosamund Pike), intensamente amável e casualmente cruel;, Sir James (Richard E. Grant), o marido infatil e ocioso; Venetia (Alison Oliver), a irmã cáustica e com distúrbios alimentares; Pamela (Carey Mulligan), a amiga pobre da família e Farleigh (Archie Madekwe), o adotado que vê a intromissão de Oliver na sua unidade familiar como uma ameaça à manutenção do afeto e do financiamento dos Catton.

Saltburn começa como um romance de amadurecimento com uma atmosfera académica, porém, rapidamente, a realizadora decide mudar de ritmo e usa o classismo inerente à força motriz da sua narrativa como máscara por detrás da qual se esconde a descida à violência ditada pela oposição entre sexo e poder. Também em “Promising Young Woman”, Emerald Fennell tinha trazido para o ecrã uma espécie de dicotomia baseada na oposição entre sexo e poder. De facto, o foco principal do filme girava em torno de uma história de violência e vingança, perturbadora mais pelo que escondia do que pelo que encenava abertamente. O filme tinha a seu favor a urgência de narrar um universo de vítimas, um mundo em que as mulheres tinham de se calar. 

Em “Saltburn”, falamos de privilégio e poder, de manipulação e selvajaria, mas neste caso Emerald Fennell não está a falar de vítimas, pelo menos no sentido comum do termo. Mergulhado numa dimensão infernal com o único desejo de encontrar um sentimento de pertença, o protagonista não quer escapar nem ao horror nem à violência. É vítima e carrasco ao mesmo tempo. O público assiste a uma sucessão de violência, vingança e crueldade gratuita, em que Oliver é, simultaneamente, espetador e participante feliz, numa dicotomia entre luz e sombra que encontra no protagonista a sua marca distintiva.

Visualmente, o filme consegue atingir patamares interessantes, especialmente nas cenas que têm lugar na mansão aristocrática. Emerald Fennell é uma realizadora que não tem medo de carregar no acelerador para mostrar um mundo canibal que se alimenta daquilo que lhe dá origem. Concebido para ser tão perturbador como aberto à reflexão sobre o veneno que corre nas veias daqueles que detêm demasiado poder e de forma injusta, “Saltburn” tem, no entanto, o defeito de querer ser um espetáculo perturbador a todo o custo. O lado mais negro, mais violento, surge por vezes não por necessidade narrativa, não para acompanhar a história, mas apenas pelo prazer de mostrar o horror, de pintar as cores vivas de uma violência que nunca se sacia.

As imagens de Linus Sandgren, diretor de fotografia, mostram toda a opulência do velho mundo, a capacidade contagiante das classes altas, um devaneio que se transforma gradualmente num teatro de crueldade delirante – uma inegável vitalidade criativa no desejo de ferir os cânones do bom gosto. Apesar da sua preferência pelo escândalo, “Saltburn” tem um pulso surrealista; incomoda mesmo com a sua falta de ideologia: um mundo onde o afeto é um bem efémero, povoado por uma versão parasita da classe trabalhadora e pelo autismo emocional da aristocracia. As tentativas de sacudir a frigidez atual do cinema são sempre bem-vindas.

7.5/10
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