É certo que toda e qualquer vida não merece ser compactada numa estrutura de três atos, receita que parece fundamental para o típico filme biográfico de Hollywood. Ao longo dos anos, no que toca à ousadia de contar histórias do mundo da música no grande ecrã, fomos tendo obras como “Ray”, “Walk the Line” e “Bohemian Rhapsody”. Agora, parece que chegou a vez de conhecermos o percurso da Rainha do Soul em “Respect”.
Ao abordar a carreira de Aretha Franklin (Jennifer Hudson), Liesl Tommy não se libertou das convenções deste tipo de formato, porém, trouxe intermitentemente uma nuance inesperada e bem-vinda ao processo de criação de “lenda” que, muitas vezes, alimenta o filme biográfico.
Antes de chegar ao cerne desta minha opinião, convém realçar o ceticismo que nutro às biopics. As tentativas de exaltar a pessoa em questão, ao começar pela juventude, passando pelas mais de duas horas a expor os contornos de toda a sua vida e trabalho, incomodam-me ligeiramente.
Desta feita, quando percebi que “Respect” começa com Skye Dakota Turner a retratar a versão mais jovem de Aretha, não fiquei entusiasmado para a proposta do filme. Não obstante, Turner começa a cantar, a representar, e, a dada altura, percebi que nada sobre a vida de Franklin poderia ser completo sem as inspirações religiosas, políticas, musicais – e o abuso emocional e físico – que foram tão centrais na sua infância em Detroit.
Ao mostrar a vida da pequena Aretha, a realizadora Liesl Tommy e a argumentista Tracey Scott Wilson começam por enaltecer a ideia de que a cantora foi uma privilegiada por nascer no seio de uma família rodeada de ícones da música. Não obstante, rapidamente, obrigam o público a encontrar falácias nessa perspetiva, dada a violência psicológica e física que a jovem enfrentou nas mãos de pessoas mais próximas. Um caminho a transbordar de talento, obstáculos, privações e que muitos não poderiam suportar.
Turner é uma das duas atrizes que dão vida a Aretha Franklin em “Respect”. Jennifer Hudson (“Dreamgirls”), irá, merecidamente, receber mais atenção pela sua prestação, mas estaria a ser negligente se não dissesse que ambas as atrizes dominaram bem as suas partes respetivas do papel. Se não fossem os vinte minutos emocionantes de Turner, Hudson não brilharia da mesma forma.
Ao longo do filme, percorremos alguns dos acontecimentos da vida da cantora até 1972, quando, aos 29 anos e no auge da fama, voltou às raízes e gravou o álbum Amazing Grace, que se tornou o campeão de vendas da sua carreira.
Ao longo de “Respect”, Aretha luta com os fantasmas do seu passado, incluindo a morte da mãe, Barbara (Audra McDonald), quando tinha apenas 12 anos de idade. Grande parte do filme gira em torno da ideia de “controlo”. Aretha tenta controlar os seus fantasmas. E, quando tenta, por direito, ser dona e senhora da própria carreira, os homens da sua vida respondem com abusos. Por fim, a cantora luta pela reconquista da estabilidade.
Tanto o pai como o marido de Aretha, tentam controlá-la à medida que a fama surge. O marido, em especial, retalia não apenas com violência, mas também por obrigar a cantora a aceitar os seus conselhos. Mas é em vão porque, quando tentam roubar-lhe os sonhos ou manobrar o seu próprio navio, Aretha encontra um refúgio atrás do piano ou no palco. É aí que surge o génio.
Nunca foi fácil contar esta história, dado que o assunto foi praticamente canonizado durante décadas. Mesmo antes da sua morte em 2018, Aretha quase não era vista como um ser humano que vive e respira. Falávamos, por outro lado, de uma espécie de presença divina que incorporava tudo o que há de bom e verdadeiro sobre a música popular americana. Ao retratar os acontecimentos tumultuosos e trágicos com um olhar particular para a relação conflituosa com o pai e o marido, mas também para a personalidade mais presunçosa da cantora, “Respect” tenta expor a condição de comum mortal da divindade do R&B.
Só que, com a mesma rapidez com que o filme nos envolve no retrato dinâmico de Hudson, o argumento transforma-se numa bola de frustração. Algumas conversas secundárias descartáveis com Martin Luther King Jr (Gilbert Glenn Brown) sobre a intenção de Franklin de participar no movimento pelos direitos civis, abordam brevemente o seu compromisso com a causa, mas o assunto é descartado rapidamente. A luta da cantora pelo alcoolismo, também parece um pormenor contado de forma frágil, tal como a relação com o empresário Ken Cunningham (Albert Jones), que foi o responsável por mantê-la saudável. Em adição, o segundo marido de Aretha, Glynn Turman, nem sequer é mencionado.
Obviamente, tentar resumir tudo o que Franklin defendeu, bem como as lutas que ganhou e perdeu, é uma tarefa árdua. Tal como noutras ocasiões, vão existir sempre omissões e pormenores mais dramáticos em filmes desta escala, mas este insight histórico não vai muito além de uma pesquisa na Wikipedia.
Apesar disso, “Respect” convida o público a descobrir os sentimentos de Franklin, sem descurar o orgulho que trouxe à comunidade. Para o mundo, fica o legado da genialidade, mas, acima de tudo, fica o impacto da bravura na demanda pelo Respeito.