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Paula Rego, Histórias & Segredos – Crítica Filme

Boca aberta num uivo destemido

by João Pedro

“Paula Rego, Histórias & Segredos” é um documentário de 92 minutos sobre a vida e o percurso artístico de uma das pintoras fundamentais do final do século XX. Realizada pelo filho, o cineasta Nick Willing, a obra ajuda-nos a conhecer a forma como a violência, o erotismo e a opressão convergiram na carreira ambígua de Rego. Neste desassossego inerente de quem calando, pintava a vida, e, pintando, denunciava a vida, percebemos a relação extensa entre obra artística e vida íntima. 

Produzido pela Kismet Film para a BBC em 2017, “Paula Rego, Histórias & Segredos” aborda o percurso artístico de uma das pintoras fundamentais do final do século XX. Filha de pai liberal e mãe autoritária, forjou um caráter tímido, reservado e cheio de medos desde a infância até que, aos dezanove anos, o pai decidiu conceder-lhe a oportunidade de estudar pintura em Londres. E, de facto, em “Paula Rego, Histórias & Segredos”, Juvenal de Figueiroa seleciona imagens muito diversas que revelam a vida artística de Rego entre Portugal e o Reino Unido.

A primeira metade do documentário centra-se em mostrar as influências familiares que recebeu dos avós e da mãe, bem como os seus primeiros anos em Portugal, até 1953, ano em que partiu para a Slade School of Fine Arts. Lá, conheceu um homem casado, o seu primeiro amante, que, mais tarde, viria a tornar-se o seu marido – o pintor Victor Willing (Vic), para quem posou como modelo. Vic era casado com uma bailarina que morava em Guilford, não obstante, Paula não se preocupava muito com este matrimónio. Vic era inteligente e tinha uma versatilidade estonteante para a pintura. Paula apaixonou-se por tudo isto.

Uma parte muito importante da sua vida e obra artística, incidiu na altura em que recorreu a diversos abortos para interromper gravidezes indesejadas. Isso refletiu-se em várias pinturas com as quais fez campanha a favor do aborto, com vista à sua aprovação nos dois referendos realizados em Portugal em 1998 e 2007. Rego fez campanha extensiva com as suas gravuras e pinturas até que o aborto foi finalmente aprovado na segunda votação. A dada altura na sua vida, chegaria o momento em que decidira não abortar, porém, Vic tinha-a abandonado. Apoiada pelo pai, que vai buscá-la de carro a Londres, regressa a Portugal. Seis semanas depois, Vic deixa a esposa que tinha na altura, escreve ao pai de Paula, e passa a viver com ela e a pequena Cassy numa casa de campo na Ericeira.

O grande sucesso deste documentário está intimamente ligado à possibilidade de podermos acompanhar a vida artística de Rego, passo a passo, evidenciando a relação íntima com a própria vida pessoal. A pintora reservada, exterioriza o mundo interior em cada um dos seus trabalhos, que nos revela em conversas com o filho e outras pessoas. A sua postura política contra a ditadura de Salazar, que captou em algumas pinturas, nunca lhe causou problemas, nem teve medo de pintá-las. Quem é que podia interpretar o desabafo daquela mente imperturbável? Paula estava, como qualquer genial, à frente das leis que a pudessem prender.

A relação com os filhos era distante. A relação com o marido era colossal. Paula Rego reconhece os casos que ambos tiveram durante o casamento, mas a dependência recíproca manteve o vínculo inalterado. As relações extraconjugais refletem-se nas suas pinturas de forma simbólica. Todas estas cenas são musicalmente ambientadas em diferentes épocas e locais por Madison Willing, que coleciona ópera, pop e fado. A música melancólica e ácida dos fados clássicos complementa o carácter dramático de algumas pinturas autobiográficas muito viscerais.

Em 1966, Vic é diagnosticado com esclerose múltipla, iniciando um período complexo e agravado pela precariedade económica que lhes bate à porta. A família regressou a Londres e, em 1973, Rego é acompanhada por uma psicanalista junguiana, que, juntamente com o apoio financeiro que solicita à Fundação Gulbenkian, permite o seu regresso à pintura. Todavia, só na década de 1980 é que começou a fazer sucesso, com o interesse da Marlborough Gallery, que a projetou internacionalmente através das suas sedes em Londres, Madrid e Nova Iorque.

Os seus trabalhos autobiográficos mudam de estilo pictórico, passando a ser muito apreciados pelo expressionismo próximo ao dos pintores Francis Bacon e Lucian Freud. Este sucesso anda de mão dada com os cuidados que tem de prestar ao marido, cada vez mais incapacitado. Pelo seu estado clínico, Paula sentia um misto de ternura e agressividade em relação a Vic até que, invariavelmente, acaba por ter de se despedir dele. Nós nunca queremos ver as pessoas que nos são queridas a definhar, porém, o adeus será sempre o adeus. Uma cena particularmente comovente é a da leitura da carta de despedida que o marido lhe escreveu, e que confiou ao melhor amigo para lhe entregar posteriormente. As palavras confortaram-na de tal forma, que Paula nunca se separou dela. “Confia em ti e serás tu mesma o teu melhor amigo.”

No fim desta homenagem magnífica, e que felizmente foi feita para que Paula Rego a pudesse ver e sentir, fica a sensação do enorme legado que esta Mulher nos deixou. A realidade espelhada, sem pudor, na tela. A vida nua e crua. Quando vislumbramos estes quadros, não estamos só a olhar; não podemos estar só a olhar. São cenários profundamente ambíguos e moralmente perturbadores sobre os quais somos obrigados a pensar mais, sentir mais e a virar do avesso tudo o que achamos que conhecemos.

Uma mulher que, destruída pela emoção, viveu para expor as verdades que a rodeavam: uma boca aberta num uivo destemido. Era o dom de Paula Rego.

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