Diz-se que todos nós temos um sósia em alguma parte do mundo. Mas o mundo é um lugar tão vasto que, entre tantas caras, quais seriam as possibilidades de encontrarmos o nosso duplo na mesma cidade onde vivemos ? Qual seria a probabilidade de ficarmos cara a cara com a nossa própria imagem?
O homem duplicado – Saramago
Feito à nossa própria imagem, o duplo pode encarnar alguns dos nossos atos mais maléficos (como em “The Picture of Dorian Gray” de Wilde), ou, gentilmente, tomar o lugar para realizar uma tarefa aparentemente impossível. Os duplos têm muitos nomes e a qualidade desta “cópia” encontra eco nas lendas gregas de Narciso. É uma fábula clássica.
E José Saramago gostava de reescrever histórias antigas: seja numa versão diferente de Christ’s Passion (“O Evangelho segundo Jesus Cristo”) ou um relato do flagelo universal (“Ensaio Sobre a Cegueira”).
Em “O homem duplicado”, o autor trabalha esta sua tradição. Saramago conta a história de Tertuliano Máximo Afonso, um personagem carregado com um nome tão satírico (que, segundo o autor, tem “um sabor clássico que o tempo estagnou”), que está fadado a ser transformado num alvo de infortúnio, e assim será.
Tertuliano é professor de História numa escola secundária de uma cidade sem nome. Quando o conhecemos pela primeira vez, ele sofre de uma “fraqueza temporária de espírito normalmente conhecida como depressão” – Saramago tem um jeito malicioso com as noções recebidas da nossa sociedade moderna.
Não obstante, ao ver o filme, Tertuliano percebe que um dos atores secundários é a sua cara chapada. Posteriormente, ao alugar todas as obras disponíveis da mesma produtora, acaba por, num processo de eliminação do elenco, conseguir identificar o homem – António Claro – que utiliza o nome Daniel Santa-Clara como pseudónimo. Assim, Tertuliano anseia encontrar o seu outro “eu”.
Saramago dá uma nova vida ao tema em cima da mesa, e que foi explorado várias vezes na literatura: o conceito dos sósias. A sua opinião sobre o tema é inteligente, alarmante e desmesuradamente engraçada, embora estenda para mais de trezentas páginas uma história que muitos teriam despachado em três.
Um dos prazeres do livro incide na forma como Saramago segue a lógica da situação que idealizou de maneira implacável.
Irremediavelmente, levantam-se questões existenciais. Qual deles, questiona Tertuliano preocupado, é o original e qual é o duplicado? Quando se descobre que Claro nasceu meia hora antes de Tertuliano, torna-se inevitável que um deles tem de ser destruído. Por terem nascido no mesmo dia, os dois querem saber, é claro, se também estão destinados a morrer no mesmo dia.
António Claro não é só o primogénito, mas é também o mais maligno dos dois. Profundamente insultado pela existência de Tertuliano, ele planeia uma vingança cruel que envolve a namorada de Tertuliano, que é mantida na ignorância do seu rival até ao fim. Tertuliano também é vingado, mas de maneira apropriadamente irónica. A história termina com uma espécie de estalo.
A história em si é assustadora e cheia de surpresas. Perto do final, fui capaz de antecipar algumas das direções do enredo, mas elas foram feitas com tanta habilidade e tempo que, embora esperasse alguns dos desenlaces principais, fiquei maravilhado quando os li.
Adicionalmente, o suspense e a tensão são muitas vezes interrompidos pelas discussões maravilhosas que o autor mantém connosco, leitores. Ele faz isso com humor e sagacidade gentis e sofisticados, com discussões filosóficas inebriantes e com comentários sobre a natureza humana.
É este material “extra” nos romances de Saramago que o separa dos outros. Não temos apenas o enredo principal e as várias conversas com o leitor, mas ele introduz um novo personagem literário, o “Senso Comum”, que fala ao personagem principal, Tertuliano, ou diretamente aos leitores.
O Senso Comum não está encarnado, mas vem a Tertuliano com frequência e, às vezes, o próprio Saramago fala-nos do bom senso. Quando se trata de Tertuliano, ocorrem reflexões maravilhosas, uma vez que ele não está muito convencido do valor dos conselhos desse tal Senso Comum.
Tal como sucede na maioria dos escritos saramaguianos, a narração é bastante interventiva. Isto não me incomoda, mas entendo quem sinta o contrário por ter uma ânsia maior no desenvolvimento da história, do que, propriamente, face aos comentários e descrições.
No que toca ao meu gosto pessoal, admito que esta não é a minha obra preferida do autor (embora ainda não tenha lido tudo) até ao momento. Mas é bastante bom. O final pode ser dúbio nas interpretações. Porém, acho que isso se afigura um ponto positivo porque reforça um hábito em desuso: pensar.
Enemy – Villeneuve
O filme começa com uma cena peculiar a partir de um ato erótico underground. Uma mulher nua entra em cena enquanto o personagem de Jake Gyllenhaal assiste com atenção.
Ela solta uma tarântula e, quando está prestes a fazer uso de um sapato de salto alto, vemos Gyllenhaal em êxtase. Saímos do quarto escuro e vemos uma mulher grávida sozinha na sua cama, e não recebemos nenhum outro contexto para esta primeira cena bizarra.
Em “Enemy”, Jake Gyllenhaal interpreta Adam Bell e Anthony Claire. Adam é um professor de História em Toronto, frequentemente visto a discutir os fundamentos do governo com a sua turma.
Um dia, por recomendação de um colega, Adam aluga um filme chamado “Where There’s a Will There’s a Way”, e fica perplexo ao ver um ator que parece ser o seu doppelganger.
Os caminhos de ambos cruzam-se algumas vezes, e nem a namorada de Adam, Mary, nem a esposa grávida de Anthony, Helen, parecem capazes de distinguir os dois.
As muitas alusões às aranhas chamam a atenção de todos, mas o efeito é potencializado graças às alegorias frequentes que envolvem as suas teias, desde os fios que cobrem a cidade ao vidro partido de um carro.
Tudo neste filme foi feito para mostrar a forma como o personagem está preso, e não importa se tenta fugir, porque acaba sempre por cair na mesma armadilha.
“Enemy” explora a banalidade da vida quotidiana, a repetição que muitos de nós enfrentamos, e é dominado por tons sombrios. Adam está infeliz com a sua existência. Ele sente-se preso, mas não sabe como escapar à prisão que a sociedade criou.
Anthony, por outro lado, vive numa existência idílica. Um aspirante a ator com uma esposa e um filho a caminho: o homem não podia pedir mais. Mas, sob essa fachada, existe uma tendência para a infidelidade e um interesse nas atividades do submundo que poucos têm, ou gostariam de ter, acesso.
Os homens são unidos por uma força aparentemente trágica. No final, o que começa por ser uma investigação banal leva Adam a arrepender-se de ter descoberto o seu sósia.
Villeneuve é inabalável nas suas tentativas de perturbar o espetador. Da ambiguidade tensa da primeira cena até à conclusão desajustada, a realização taciturna cria uma atmosfera intensa e perturbadora que está presente em todo o filme.
Esse sentimento é intensificado por uma banda sonora apropriadamente misteriosa e por uma série de cenas que não estão conectadas – sonhos partilhados e fantasias bizarras – que sacodem o senso da realidade.
Gyllenhaal é perfeito nas duas partes. Por vezes cómico e outras profundamente perturbador, a sua performance é, de certa forma, um familiar do seu registo em “Nightcrawler”.
O poder de deixar alguém sem respostas é o que faz algumas obras serem dilaceradas nos seus primeiros anos, apenas para serem apreciadas décadas depois.