Estamos em 29 de Dezembro de 1935. Avizinha-se um domingo chuvoso na capital lisboeta e é nesta manhã que Ricardo Reis chega à cidade, retornando do autoexílio depois de 16 anos no Brasil. É desta forma que se inicia o novo filme de João Botelho, baseado na obra homónima de José Saramago em que o autor se propõe a dar um destino final ao heterónimo de Fernando Pessoa, algo que este nunca obteve por parte do seu criador.
Ricardo Reis (interpretado por Chico Diaz), aquando da sua chegada, encontra uma Lisboa muito diferente da que deixou há tantos anos atrás: em meados dos anos 30 Portugal vivia em plena época do Estado Novo, numa altura marcada pela ascensão do fascismo e do totalitarismo em que as liberdades individuais dos cidadãos eram suprimidas em prol de uma falsa estabilidade política. Estes acontecimentos representam um choque para o nosso protagonista e é através dos seus olhos que conhecemos esta estranha e conturbada Lisboa que perdera tanto da sua familiaridade.
Pouco tempo depois de se hospedar no Hotel Bragança, o Doutor Reis descobre que o seu velho amigo Fernando Pessoa (Luís Lima Barreto) faleceu recentemente. Movido pelo pesar e pela saudade, resolve visitar o cemitério dos Prazeres, onde julga estar o corpo de Pessoa, mas é ele próprio que acaba por ser visitado pelo fantasma do defunto.
Deste tão aguardado reencontro vêm conversas fascinantes em que ambos discutem a vida um do outro, lançam questões filosóficas sobre quem somos e quem pretendemos ser e falam da morte e do estado que existe para além da mesma.
Nestes diálogos, Pessoa chega a adotar um tom de gozo e brincadeira ao reconhecer e criticar o contraste que há entre a vida amorosa de Ricardo Reis nesta história e a maneira como ele o criou – alguém que admira a serenidade, procura a tranquilidade da alma e recusa sucumbir a excessos do envolvimento emocional.
O Ricardo Reis que volta a Lisboa já não é o mesmo que partiu em 1919 e, agora, é praticamente um galã. Desde a relação física e carnal que desenvolve com Lídia (Catarina Wallenstein), criada do Hotel Bragança, à forte paixão que sente por Marcenda (Victoria Guerra), uma outra hóspede do hotel que tem um braço paralisado, este heterónimo está longe do mero observador que contempla, racionalmente, a vida ao seu redor.
As diferenças notórias entre o Ricardo Reis que vemos no ecrã e aquele que Pessoa idealizou em 1913 prendem-se, no meu entender, com o tema central do filme de identidade: quem é, de facto, Ricardo Reis e será que ele tem a liberdade de escolher quem quer ser?
Nesta produção, João Botelho conta com um elenco que é fundamental na representação fidedigna das personagens principais. Luís Lima Barreto dá um humor e perspicácia inéditos às intervenções de Fernando Pessoa, Catarina Wallenstein é fantástica no papel da vulnerável e inconstante Lídia e Victoria Guerra encarna uma Marcenda tímida e reservada, mas que mostra as suas emoções intensamente quando fala dos assuntos próximos do seu coração.
Neste filme temos também a construção de um ambiente nostálgico que conta com o auxílio de cenários e guarda-roupa fiéis à época, bem como uma fotografia que, por ser a preto e branco, tem a possibilidade de jogar com a luz e as sombras de uma forma única.
A bela banda sonora criada pelo pianista Daniel Bernardes é eficaz na criação de um tom sóbrio que é consistente ao longo de todo o filme e que, por vezes, chega a parecer evocativo de uma marcha fúnebre, talvez alusiva à morte de Fernando Pessoa e, até ainda, da democracia e liberdade no nosso país.
João Botelho criou uma obra em que, nas suas palavras, “o texto é a coisa mais importante do filme” e o resultado é um filme que nutre um carinho especial pela linguagem e pela língua portuguesa, tornando-se essencial para quem partilha do amor pela prosa e pela poesia da nossa terra.
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https://vimeo.com/386731575