Depois de levar para casa os Óscares de Melhor Filme e Melhor Realização com “The Shape of Water”, Guillermo Del Toro regressa com um remake de “Nightmare Alley”, de 1947. Numa adaptação da obra de William Lindsay Gresham, este neo noir explora um tipo de monstro muito particular, que Del Toro conhece bem de outras andanças: a alma humana.
Stan Carlisle (Bradley Cooper), um homem carismático, mas de estômago e bolsos vazios, ganha o afeto da clarividente Zeena (Toni Collette) e do seu marido, Pete (David Strathairn), um antigo mentalista. O casal ensina-lhe vários truques em torno destes negócios, que se revelam uma boa oportunidade de prosperidade. Isto porque, a dada altura, Stan faz uso destes conhecimentos para subjugar a elite rica de Nova Iorque dos anos de 1940.
A primeira metade de “Nightmare Alley”, fica dentro dos limites deste circo sombrio, e é evidente que Guillermo Del Toro é fascinado por esta subcultura. Enquanto dá uso à estética com alguns cenários incríveis, que evocam a arte dos cartazes de circo mais alternativos, o cineasta também está disposto a mostrar o lado feio deste mundo. O filme entra em grandes detalhes sobre como homens comuns podem aceitar fazer as coisas mais sinistras, a ponto de enriquecer.
Assim, ao longo da história, perante os dons e conhecimentos que lhe foram transmitidos, Stan percebe que pode chegar a públicos mais ricos, para lá da triste realidade de um circo de aberrações. É por isso que ele decide fugir com Molly (Rooney Mara), para trabalhar o seu dom em grandes salões de baile. Em Stan, vemos um homem ambicioso e implacável. Ele estuda bem a arte mental, sabe convencer as pessoas que lhe dão guarida e a sua arrogância leva-o a ignorar os limites dos atos que pratica. Por outro lado, em Molly, vemos uma alma caridosa, que passou toda a sua juventude no circo.
É num destes espetáculos, que Stan conhece Lilith Ritter (Cate Blanchett), uma psiquiatra sedutora e misteriosa. Quando ele começa a fazer atuações particulares para clientes ricos e poderosos, Lilith usa o seu conhecimento profissional para ajudar Stan a ser mais convincente no seu jogo de mentalismo. Por conseguinte, a dada altura, o personagem vira costas às regras bem estabelecidas do ofício que aprendeu, para mergulhar em mares demasiado perigosos.
Stan e Molly entram, então, neste mundo de brilho e glamour. É nesta realidade que a Lilith de Cate Blanchett opera, com a sua postura sensual a fumar um cigarro, de sorriso irónico, enquanto tenta manipular o ego de Stan. Atualmente, Cate Blanchett é uma das melhores atrizes a trabalhar na indústria, e, a meu ver, a sua prestação em “Nightmare Alley” é simplesmente surpreendente. Se alguém quiser esboçar uma lista de atrizes desta geração, para interpretar uma femme fatale clássica, Cate Blanchett tem de estar no topo das escolhas.
Com o argumento de Del Toro e Kim Morgan, o filme tende a enrolar demasiado o começo da história, porém, funciona para evocar a subcultura e o código pelo qual se rege o circo itinerante. O enredo guia-nos por dois mundos díspares, a superioridade e inferioridade das classes. Como em qualquer grande noir, a história dá espaço para que Stan consiga fugir à espiral descendente em que se encontra, mas o ego e a ambição acabam por vencer.
O clímax desagua em reviravoltas envolventes e chocantes, que culminam num final tão sombrio e trágico quanto espiritual. Combinado com o design de produção impecável e a fotografia deslumbrante de Dan Laustsen, “Nightmare Alley” apresenta fatores que, quanto a mim, conseguem disfarçar ou superar os míseros elementos negativos.
“Nightmare Alley” é um outro exemplo da contradição que marca a carreira de Guillermo Del Toro – a combinação obsessiva do hediondo e do belo. Porque no mundo de Del Toro, não são as criaturas deformadas que são os monstros; é a escuridão que está depositada no coração dos homens.