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La Dolce Vita: A busca pelo sentido da vida numa articulação artística

by João Pedro

“La Dolce Vita” arrecadou a Palme d’Or (“Melhor Filme”) no Festival de Cannes em 1960. É uma das obras primas de Federico Fellini. A busca pelo sentido da vida está no pano de fundo de quase todas as histórias, mas a jornada quase cómica de “La Dolce Vita”, pela atmosfera aprazível de Roma, representa uma bela articulação artística dessa busca pela vida.

Esta review contém spoilers

“La Dolce Vita” foi filmado em Roma, e ambientado principalmente ao longo da avenida Via Veneto, com um vasto leque de personagens.

Marcello Rubini (interpretado por Marcello Mastroianni), é um aspirante a escritor que exerce funções de colunista social. Sylvia (Anita Ekberg) é uma estrela de cinema sueco-americana repleta de glamour. Maddalena (Anouk Aimée) é uma mulher bonita, extremamente rica, que se dedica à busca do prazer. Emma (Yvonne Furneaux) é a namorada de Marcello. Steiner (Alain Cuny) é o amigo intelectual do protagonista e Paparazzo (Walter Santesso) é um foto-jornalista autónomo que representante a classe dos caçadores de publicidade na vida urbana moderna. O nome deste personagem deu origem ao famoso termo técnico conhecido como “paparazzi”.

A história do filme compreende uma sequência de episódios expressionistas, quase como movimentos sinfónicos, que seguem a demanda de Marcello em busca de alguma coisa.

Ele não procura simplesmente a iluminação, isto é, existe sempre algo mais complexo – ele quer o que todos nós procuramos, uma vida de plenitude e envolvimento total. Podemos chamar de “amor”, mas é quase inexprimível.

A genialidade de Fellini incide na sua habilidade de coreografar este tipo de sentimento por meio de caracterizações expressivas e interações em ambientes dinâmicos e envolventes. Cada um dos episódios representa uma tangente específica da busca de Marcello pela sua realização pessoal. Na maior parte, um determinado episódio envolve uma noite de delírio crescente que termina com a luz fria do dia a irromper.

As cenas iniciais mostram a vida frenética de Marcello, o colunista social, que frequenta a noite da Via Veneto em busca de escândalos de celebridades. Ele costuma surgir na companhia de Paparazzo, que tenta tirar fotos espontâneas de celebridades em perigo. Certa vez, numa das suas reportagens, Marcello reencontra uma velha amiga, a bela e envolvente Maddalena.

Maddalena é tão rica que se aborrece com Roma; mas Marcello aprecia este frenesim, e vê, inclusive, a cidade como uma selva na qual se pode esconder atrás de vários papéis diferentes. Nesse encontro, Marcello e Maddalena acabam por passar a noite juntos num quarto de prostitutas.

Adicionalmente, estas cenas iniciais também servem para apresentar Emma, ​​a noiva de Marcello, que não lida da melhor forma com as suas suspeitas sobre os possíveis casos de Marcello. Assim, desde o início, vemos um homem dividido entre duas opções que não o satisfazem: Maddalena, que só oferece prazeres momentâneos, e Emma, com uma obsessão fora do comum.

Posteriormente, naquela que talvez seja a cena mais conhecida do filme, conhecemos Sylvia, a estrela de cinema extravagante que visita Roma. Sem surpresa, Sylvia chama a atenção de Marcello e de outros aficionados dos media. O protagonista fica imediatamente apaixonado pela beleza exuberante, todavia, o que vê é apenas uma miragem voluptuosa, mas não a promessa de um relacionamento gratificante.

Um outro acontecimento que acaba por ser alvo de notícia, é o relato do avistamento milagroso da Virgem Maria por duas crianças de classe baixa. Esta também é uma cena memorável. A multidão de fiéis, que rodeia as duas crianças inspiradas na fantasia, torna-se indisciplinada e, em seguida, o caos ocorre quando uma tempestade interrompe as atividades. Tudo termina em confusão, muito longe de qualquer mensagem de harmonia espiritual que deveria ser a base das narrativas religiosas.

Por conseguinte, em mais de 70 minutos de filme, somos apresentados a três ilusões socioculturais: o fascínio da lealdade sexual e liberdade, a imagem da beleza fascinante e as limitações da religião convencional.

Por outro lado, Steiner representa outro caminho. Steiner, amigo do protagonista, é um intelectual refinado com gosto estético, uma mulher incrível e filhos adoráveis. Ele é rico, cordial e sensível a todos ao seu redor. Para Marcello, que procura abandonar o jornalismo e tornar-se um escritor sério, Steiner é um modelo definitivo.

Durante uma festa na casa de Steiner, repleta de artistas e intelectuais, ambos os personagens conversam e discutem como se deve viver a vida. Marcello diz que quer ter coragem de abandonar o seu estilo de vida materialista e ser como o amigo. Não obstante, Steiner expressa cautela sobre a fúria desconhecida da existência que está além do nosso olhar:

Safety is not being locked up in one’s home. . . . A more miserable life is better, believe me, than an existence protected by a perfectly organized society.”

Um pouco mais tarde (inspirado por Steiner para escrever alguma coisa séria ), Marcello é visto a trabalhar na sua máquina de escrever num café à beira-mar.

Nessa cena, a empregada é a essência da inocência absoluta, e Marcello é cativado – não pela luxúria carnal, mas pela imagem da genuinidade imaculada. Paola representa outra imagem da vida, outro caminho – imediatismo irrefletido – que Marcello encontra, mas sobre o qual não se detém.

Nesse ponto, estamos a meio do filme. O resto da história retrata um afastamento e distanciamento progressivos da comunicação autêntica. Este distanciamento não é o distanciamento intelectual platónico que foi invocado por Steiner, mas é a distração de um envolvimento sério.

© Cineteca di Bologna / Reporters Associati

Posteriormente, decorre um dos momentos mais reveladores do filme. Steiner mata os dois filhos e comete suicídio. A cena dos paparazzi a zumbir quase diabolicamente em torno da mulher do “homem hipoteticamente perfeito” – que fica em estado de choque quando é informada da tragédia – é um dos momentos mais memoráveis da longa-metragem.

A cena final mostra outro grupo de ricos a desperdiçar tempo numa festa. Marcello desiste do seu trabalho como jornalista e torna-se um publicitário cínico. Já não existe pretensão de dizer a verdade: ele escreve as mentiras que os empregadores lhe pagam para escrever. Enquanto as cenas anteriores mostraram uma certa decadência refinada, esta cena desce inteiramente para a devassidão depravada e destrutiva.

A meu ver, existem pormenores muito bons acerca do trabalho de Fellini neste filme. Embora, por vezes, a história pareça um pouco vaga, existe toda uma progressão implacável da esperança ao desespero. E, ao longo do tempo, Marcello interage com pessoas que não representam mais do que becos sem saída.

Emma representa o trabalho enfadonho e a rotina – a promessa de uma vida aborrecida. Maddalena representa a auto-indulgência, uma busca sem fim por distrações momentâneas. Sylvia representa a fantasia que nunca pode ser realizada. O pai de Marcello, que também surge de rompante, representa o distanciamento dos valores tradicionais com os quais o protagonista foi criado. Quanto a Steiner, representa a vida reflexiva que está tão desligada do envolvimento genuíno que pode empreender a própria dissolução.

Resta Paola. Uma ilusão ou a única saída relevante ?

Descrevê-lo desta forma pode fazer com que o filme pareça esquemático e artificial, mas na mão de Fellini, “La Dolce Vita” tem um movimento narrativo que é continuamente envolvente.

No geral, julgo que é isto que conta – admirar o domínio da narrativa cinematográfica de Fellini. Existem inúmeras cenas em “La Dolce Vita” que podem vigorar na nossa memória para sempre. E é isto que os grandes filmes podem oferecer – um retrato das questões fundamentais da vida que podemos relacionar com as nossas próprias experiências mais pessoais.

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