O testemunho de vários atentados e mutilações públicas é a rotina diária de Pervin, e é sob este pano de fundo que começa “Kalifat”, série criada por Wilhelm Berhman e Niklas Rockström.
Behrman tem experiência como repórter político no jornal, Svenska Dagbladet, enquanto que Rockström escreve argumentos para televisão há mais de 20 anos.
Ambientado em Estocolmo e na Jordânia, a série de oito episódios desenvolve-se através de três histórias. A primeira é centrada em Pervin, uma muçulmana sueca na Síria que tenta regressar a casa. O segundo incide em Fatima, uma oficial da Säpo em Estocolmo, que está a tentar ajudar Pervin. Já no que toca ao terceiro, diz respeito a Al Musafir, um jovem que recruta jihadistas, e que ajuda a radicalizar duas irmãs – Suleika e Lisha – e a sua amiga, Karima, enquanto planeia efetuar ataques terroristas na Suécia.
Desta feita, as três histórias acabam por se entrelaçar de forma sublime.
No que diz respeito à pesquisa de base para a conceção do enredo, os argumentistas explicaram que leram vários artigos e livros sobre O Estado Islâmico, nomeadamente sobre a forma como recrutam pessoas na Europa.
Quanto a mim, embora não seja de todo um especialista na matéria, o resultado final é um produto bem elucidativo, visto que aborda questões críticas que envolvem a radicalização.
Ibbe, também conhecido como al-Musafir, trabalha como conselheiro escolar. Nesta sua condição, é capaz de construir relações com adolescentes com base na confiança.
Os jovens olham para ele, e falam sobre os seus medos, dúvidas e problemas familiares. Talvez não seja assim tão irrisório conjeturar que um “recrutador” de jihadistas possa infiltrar-se em escolas secundárias europeias. Seja como for, os mecanismos de radicalização interna e a relevância de construir confiança num líder carismático, são pilares de centenas de caminhos de radicalização conhecidos.
Na série, Ibbe dá um passo à frente, e encanta todas as raparigas que tenta recrutar. No caso de uma rapariga que trabalha numa loja no aeroporto, ele até conhece o pai dela para a pedir em casamento.

© Filmlance 2020 Photo: Johan Paulin
O mais velho de dois irmãos suecos, que também são recrutados por Al-Musafir, foi radicalizado na prisão. O mais jovem mostra sinais claros de fragilidade mental e, sem discernimento pessoal, compromete-se com um plano suicida. Efetivamente, estas dinâmicas não são totalmente familiares para o público em geral, e é aqui que “Kalifat” brilha.
A série exalta que as famílias acabam por ter um papel importante nos processos pelos quais as raparigas estão a passar, isto é, contribuem para esta radicalização. Por exemplo, o pai de Karima – de um antigo país soviético – é extremamente violento.
Em relação às famílias retratadas, alguns elementos podem desencadear algumas críticas.
Primeiro, os muçulmanos pacíficos e contemporâneos são completamente ignorados. A série mostra apenas dois prismas estreitos da identidade muçulmana: extremista ou o ultra-secularista.
Em segundo lugar, se é verdade que a maioria das famílias não possui ferramentas para combater o processo de recrutamento, alguns contra-argumentos apresentados (como os que são proferidos pelos pais de Suleika) para convencer as raparigas de que estas ideias são erradas e perigosas, revelam-se desmesuradamente fracos.
Os pais não oferecem argumentos sofisticados para afastar a filha daqueles ideais. Em vez disso, elaboram declarações fracas como “this is not true Islam”, seguidas de silêncios longos e passivos.
O facto de existir muito ênfase no cenário idílico e na vida paradisíaca, é uma parte recorrente das narrativas de recrutamento dos jihadistas, que alternam o componente heróico relacionado à luta no caminho de Deus com a harmonia do quotidiano utópico do Daesh. Por conseguinte, este pormenor é usado para convencer as três jovens.

© Johan Paulin/SVT
Ao longo dos oito episódios, temos a oportunidade de descobrir algo sobre a Swedish Preventing Violent Extremism Strategy, em particular sobre o papel principal desempenhado pela comunicação, e o diálogo entre os diferentes atores no terreno.
Neste sentido, foi adotado na Suécia a chamada “Bússola de Conversação” – um guia essencial para professores, assistentes sociais e assistentes de jovens, acerca de possíveis sinais de radicalização, bem como os métodos a adotar quando estes sinais são observados.
Além destes mecanismos bem ilustrados, acho que é relevante mencionar uma escolha notável, em que os argumentistas não adotaram atalhos e evitaram cair em clichés.
E isto está relacionado com o caráter de Pervin, a mulher que se mudou para o território controlado pelo Estado Islâmico com o marido, mas que depois quer deixar Raqqa, e voltar para a Suécia.
Em vez de cair na tentação de mostrar uma relação abusiva, em que o marido jihadista nunca deixa que a mulher tenha opinião, a série retrata um casamento muito mais desfocado.
Pervin ameaça deixar o marido na única vez em que este perde a paciência com ela. Hosam é descrito como um homem muito frágil, cheio de inseguranças e que depende muito do apoio da esposa. Contudo, isto não quer dizer que a relação seja saudável e equilibrada, mas ainda assim, fica evidenciado que o Estado Islâmico é uma “galáxia” muito diversa.
O atalho para atender às expectativas do público não embarca no golpe de asa da violência doméstica extrema, e no estereótipo de personagens. Felizmente, a qualidade da série melhora significativamente sem esse atalho.
Embora possa espelhar falhas na representação das várias famílias, “Kalifat” é um produto cativante e divertido, que serve de alerta para um dos grandes vírus que temos por aí.
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