Fazer um documentário biográfico é um trabalho desafiante. Aos cineastas, é exigido um tato considerável – tanto em relação às próprias decisões como à pessoa que se torna o seu sujeito. Caso contrário, é difícil escapar à superficialidade tanto do personagem como de toda a obra. Felizmente, Miguel Gonçalves Mendes, embora jovem (tinha 26 anos quando as filmagens começaram), foge a todas estas armadilhas com agilidade. “José e Pilar” é o retrato de uma figura pública, de um artista, de um marido e de um homem para quem chegou a altura de acertar contas consigo próprio. É o retrato de um Prémio Nobel. É o retrato de José Saramago.
“José e Pilar” conta a história de José Saramago, Prémio Nobel da Literatura em 1998 e o primeiro vencedor do prémio a escrever em Língua Portuguesa. Cínico e ateu declarado, suscitou mais controvérsia do que simpatia num Portugal católico. O facto de não ter tido sucesso como escritor até aos sessenta anos, acrescentou cor à sua obra, visto que o seu primeiro romance, publicado durante a juventude, não obteve reconhecimento, o que efetivamente dissuadiu o escritor de prosseguir a sua carreira literária.
Após um conflito com o governo português, que, em 1992, recusou submeter o seu “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” para o Prémio Europeu de Literatura (por, alegadamente, “ferir” os sentimentos religiosos dos católicos), Saramago deixa Portugal e muda-se para Lanzarote, uma das Ilhas Canárias, onde se instala com a sua parceira de longa data e mais tarde esposa – a não menos controversa Pilar del Río, jornalista e feminista espanhola.
Este documentário centra-se na relação entre os dois – personalidades extremamente diferentes, mas no entanto dedicadas uma à outra, amando-se mutuamente e enchendo completamente o seu mundo. O realizador observa o casal na sua vida quotidiana: quando estão a organizar documentos, a jantar com os amigos ou a passear; durante as suas viagens juntos, encontros com leitores que duram até à meia-noite ou convenções literárias. Acontecimentos captados por Miguel Mendes, com um sorriso caloroso e um piscar de olhos atrevido da câmara.
Surgem muitas conversas entre José e Pilar; conversas que são a melhor prova do seu amor. “Pilar, chega aqui. Acabei de dizer uma coisa linda… Que eu tenho ideias para romances e tu tens ideias para a vida… e eu não sei o que é mais importante“. Pilar responderá, e José, já sem dúvida, admitirá que ela é a mais importante.
Por conseguinte, o fio condutor do documentário é “A Viagem do Elefante” – romance em que o escritor trabalhou durante as filmagens (2004-2008). É também uma metáfora perfeita para as inúmeras viagens que o vencedor do Nobel fez.
Apesar dos problemas financeiros que se multiplicaram (aparentemente, o realizador contraiu um empréstimo para poder continuar a fazer o filme), a equipa acompanhou Saramago e Pilar por todo o mundo. Mendes admitiu que, em certa medida, traiu-os a ambos: prometeu que as gravações não durariam mais do que seis meses, à medida que se estenderam por quatro anos.
Houve também momentos menos bons: durante as filmagens, Saramago adoeceu gravemente e a sua vida esteve em jogo. Não obstante, recuperou e conseguiu assistir a uma versão funcional do filme, com três horas de duração. No formato final, a obra foi lançada um ano após a morte do escritor, pelo que continua a ser um testemunho perfeito dos últimos dias de “um artista que prova que o génio anda de mãos dadas com a simplicidade”.
E isso manifesta-se de forma consistente na execução da obra. O estilo representa um filme em que está contida a literatura de Saramago: sem grandes declarações e citações eruditas, mas com distância irónica, perversidade e até um certo sarcasmo amargo. A aparente desordem que podemos observar nos livros de Saramago (quase não usa pontuação e não distingue diálogos no texto) também é visível no filme – as cenas parecem aleatórias: do Brasil passamos para Lanzarote, e de lá novamente para Lisboa. Na cronologia relativa, também temos muitas declarações retrospetivas. Esta edição, porém, forma um todo claro e bem pensado, que cativa pelo calor e pela credibilidade.
Embora enalteça a obra de Saramago, Mendes não coloca o autor num pedestal nem o desnuda das polémicas que o acompanham – documenta-as, mas não as tenta explicar ou justificar. Ele aprofunda o retrato psicológico do escritor, olhando para a obra pelo prisma do seu amor por Pilar – uma disparidade de disposições e opiniões, suporte comum para as adversidades da velhice e monotonia quotidiana, mas intensa e fresca ao mesmo tempo. Uma homenagem digna a um Prémio Nobel!
“Um dia desaparece o Sol… e acabou. E o Universo nem sequer se dará conta de que nós existimos. O Universo não saberá que o Homero escreveu a Ilíada.”