De forma sublime, “Joker” apresenta um fio narrativo sobre a origem do vilão da DC. Contudo, os detalhes impostos no argumento fazem com que coloquemos inúmeras questões em cima da mesa: “O que é que era de facto real na vida de Arthur Fleck?” ou “Qual o significado da sua última piada?”
De forma ostensiva e deliberadamente meticulosa, “Joker” conta a história de Arthur Fleck, um homem que não se consegue enquadrar nos parâmetros idealizados da sociedade (seja lá isso o que for). Despedido do trabalho – na condição de palhaço – por levar uma arma para um hospital infantil, Arthur acaba por ficar isolado dos cuidados sociais a que estava habituado.
Nesse trajeto de deambulação, assassina três funcionários da Wayne Industries, depois de ser atacado num comboio. Posteriormente, ao desencadear um movimento de protesto da classe trabalhadora, passa a acreditar que Thomas Wayne é o seu pai biológico.
Não obstante, vem a descobrir a verdade – foi adotado, maltratado e abusado sexualmente enquanto ainda era criança. Perante esse cenário, Arthur atinge o limite que se personifica em dois acontecimentos: sufoca a mãe e esfaqueia um ex-colega de trabalho.
Mais tarde, ao ser convidado para o programa de Murray Franklin, transforma-se definitivamente em Joker, e torna-se o filho dos protestos que, entre outros crimes, matam os Waynes. Por fim, a longa-metragem termina com Arthur trancado no Arkham Asylum, e a receber cuidados já inúteis perante o seu estado.
Para quem presta atenção à cena final do filme, a questão patente que fica no ar nem é tanto “o que aconteceu?”, mas sim: “isto é real?”. Enquanto os Waynes jazem numa Gotham a arder e a polvilhar de caos, Arthur esconde a sua piada final, e há uma sensação perturbadora de que todos aqueles momentos foram fruto da imaginação do personagem.
Em “Joker”, Todd Phillips joga com a realidade de uma maneira muito semelhante a Scorsese. Efetivamente, a noção de veracidade que pensamos entender começa a desaparecer quando a mente de Arthur toma um caminho mais sombrio.
Os momentos mais intrigantes da narrativa incidem nas cenas em que a mente de Arthur assume o controlo dos acontecimentos. No início, ele imagina que está no programa de Murray Franklin, e que é convidado a fazer parte do direto. Depois, quando atinge o precipício da sanidade, descobre que o seu romance com Sophie era inteiramente fictício.
Afinal, para ela, ele é apenas o homem que vive ao fundo do corredor, e que decidiu, entretanto, invadir a sua casa. No fim, não é totalmente perceptível se Arthur acaba por matá-la ou não.
Claro que esta revelação pode fazer com que coloquemos tudo o resto em causa. Será que ele matou mesmo Randall no seu apartamento? A reação ao homicídio de Murray foi assim tão destrutiva? Os manifestantes consideram-no de facto um Messias?
A resposta a todas essas perguntas poderá incidir, indubitavelmente, no fruto da imaginação de Arthur, uma fantasia em que ele sistematicamente consegue vingar-se daqueles que o prejudicaram, ao mesmo tempo que se torna o herói acidental da sua própria história. Seja como for, o argumento está concebido de forma tão coesa e magistral, que qualquer interpretação pode ser válida.
O que podemos concluir com alguma certeza é que a cena final de “Joker”, com Arthur a ser interrogado por uma psiquiatra, é verdade. É o limite da história, e sugere que, independentemente dos crimes que cometeu realmente, Arthur acaba por ser capturado.
Mas, como constatamos mesmo nesse momento, ainda restam grandes perguntas sobre o que nos é mostrado, além da imagem assustadora de alguém que idealiza um miúdo a ver os pais a serem assassinados mesmo à sua frente.
Embora “Joker” seja uma história de origem independente para o Palhaço do Crime, existe uma ligação intrínseca com o universo da DC Comics. Esta conexão está presente desde muito cedo no filme, devido à obsessão de Penny Fleck por Thomas Wayne. Esta informação lança as bases para a sugestão (aparentemente falsa) de que Arthur é meio-irmão de Bruce Wayne.
Mas é no final que as coisas começam realmente alinhar-se. A revolta causada pelo homicídio de Murray ocorre quando Thomas, Martha e Bruce estão a sair de um cinema. E qualquer fã de Batman sabe o que vem a seguir: os Waynes são mortos, e Bruce observa-os lentamente enquanto dá os primeiros passos para se tornar o Cavaleiro das Trevas.
Porém, esta não é a origem do Batman a que estamos acostumados. Nesta perspetiva, o assassino confronta Thomas Wayne pelas suas ações contra a classe trabalhadora; as pérolas de Martha são destruídas como um subproduto. Desta feita, convém realçar que este triste estado de coisas é desencadeado por Arthur Fleck. Nesta história, é o Joker que cria o Batman.
Voltando agora um pouco atrás. Uma das grandes reviravoltas do filme prende-se com a revelação de Penny, a mãe de Arthur, criar a ilusão de que ele era filho de Thomas. Seja como for, Thomas refuta essa possibilidade de forma convicta, e os registros psiquiátricos de Penny revelavam um diagnóstico de esquizofrenia, tal como um certificado de adoção (sem nome, mantendo algum mistério quanto ao passado de Joker). A partir daí, Arthur perde toda a clareza do mundo que o rodeia.
Todavia, na fisionomia da narrativa, não é descabido ponderar que Thomas Wayne encobriu a verdade sobre o filho bastardo que teve com uma empregada. A título de curiosidade, Dante Pereira-Olson (o ator que dá vida ao jovem Bruce), interpretou a versão mais jovem do personagem de Joaquin Phoenix em “You Were Never Really Here”.
Obviamente, este não é o ponto fulcral da última parte do filme, e se for verdade, não é o que leva Arthur ao ato final. Não é essencial para decifrar o verdadeiro significado do Joker. Mas mesmo sendo uma possibilidade discutível, destaca a distância e a profundidade da queda do personagem.
Assim, com o tumulto de todos aqueles que usaram máscaras, há a possibilidade de Arthur Fleck ser apenas a inspiração para outro homem desconhecido assumir o verdadeiro legado de Joker. Esta é uma questão que os envolvidos evitaram cuidadosamente nas entrevistas, e talvez seja por um bom motivo.
Se Arthur não é o Joker que conhecemos, então isso reformula completamente o que é o filme: não se trata de uma simples história de origem sobre o vilão da DC, mas sim da origem da Gotham que precisa de um Batman. Joker é uma metáfora, ou seja, é tanto o produto de um homem com problemas mentais, como de uma cidade que o negligencia.
Todas estas perguntas estão enraizadas na cena final do filme, um dos momentos mais discutíveis sobre a realidade do enredo. Durante essa cena, Arthur tem um ataque de riso incontrolável, e quando questionado sobre o teor da piada, responde que a psiquiatra não está apta entender o teor do humor em questão.
Qual é a piada? Será Thomas Wayne e como a própria influência de Arthur deixou de ter importância? É Bruce Wayne, cuja inocência é roubada pelo resultado das ações de Arthur? É a própria psiquiatra, que Arthur presumivelmente assassina com base no sangue vermelho que reveste as solas dos sapatos na cena final?
Talvez a piada seja o próprio Arthur. A conclusão mais apropriada para aquele Joker é que toda a sua vida é uma comédia (tal como descreve enquanto sufoca a mãe). Talvez seja tudo mentira; talvez ele esteja apenas a divertir-se com a nova perspetiva de vida ganha. Mas isto é o mais próximo de verdadeiro que Arthur Fleck pode ter. Tão real como cantar “That’s Life”, de Frank Sinatra.
Um dos argumentos mais usados para explicar a mensagem final do filme é “vivemos numa sociedade”, mas essa lição de moral é bastante redutiva. Sim, é evidente que o filme explora essa ideia, desde o subfinanciamento documentado do sistema de saúde mental, até ao apresentador que envergonha uma pessoa doente. Em contrapartida, o cerne da história incide na negligência por parte daqueles que deveriam ser responsáveis.
Os motins acabam por ser a espinha dorsal do filme e se são pessoas comuns que acabam por aderir a movimentos perigosos que estão adormecidos na sociedade, isso mostra a facilidade com que toda a estrutura dessa sociedade pode desmoronar num ápice.
Thomas Wayne não é apresentado como aquela figura de filantropo ao qual muitos estão acostumados. Em contrapartida, a sua maneira desprezível de administrar a pasta de Gotham evoca paralelos com Donald Trump, mas o uso da palavra “palhaços”, que adota como termo depreciativo recuperado pelos insultados, faz lembrar a declaração de Hillary Clinton durante as eleições de 2016, quando proferiu que os apoiantes de Trump eram “deploráveis”.
Desta forma, existe uma dualidade que se encaixa na natureza irreal do filme, e que sugere que Wayne é o que Arthur vê, e não o que Bruce ou o mundo acreditam ser real.
No final, temos o retrato de um homem perdido na sua psicose e condenado a lutar para sempre no seu manicómio, e um futuro incerto para o mundo que o criou e o fez sofrer.