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“Dogville”: A fábula da natureza humana

by Miguel Pereira

Parte fábula, parte arqueologia de moral, parte espelho, “Dogville” entrega um julgamento contundente da natureza humana e a sua bússola moral, inveja e egoísmo. Uma condenação aberta de consumismo, capitalismo e imperialismo americano, que desanca todas as partes da natureza humana exploradas por sociedades capitalistas.

“Dogville” explora tudo isto na forma de uma fábula sobre Grace, uma jovem mulher privilegiada que escapa para uma pequena típica vila americana chamada Dogville, onde pessoas simples que sobrevivem em tempos difíceis são romantizadas ao ponto de Grace não ver as suas falhas humanas, acabando por as perdoar por tudo. Grace é arrogante o suficiente para acreditar que estas pessoas deverão ser perdoadas por terem padrões morais mais baixos.

A fábula segura um espelho para nós, se o quisermos fitar. Mostra-nos o que acontece quando a generosidade se torna lentamente numa tarefa, ou quando bondade depende do valor reembolsado mais tarde. O que acontece quando somos apontados pelas nossas falhas – não aquelas que sabemos ter, mas sim aquelas que juramos não ter, que habitam na privacidade escura para onde não olhamos, ao lado dos nossos instintos básicos, e que tentamos mascarar e tapar com caridade e bondade. A vila de Dogville é a redução destas falhas até à sua essência mais vil, tornando-o humano em pouco mais do que um cão: um ser que não distingue o bem do mal, e que tem de ser dissuadido do seu instinto e natureza para atuar de forma mais apropriada, segundo morais superiores.

Depois, temos o ângulo político, que por si não é muito diferente. Política é, no fundo, um grupo organizado de pessoas a tentar dar-se bem com outro grupo organizado de pessoas. A generosidade de um país perante outro, enquanto seguram no bolso de trás a lista de retorno de valores. A palmadinha no ombro por mostrar bondade e suporte, enquanto a outra mão está a enviar a fatura expirada num envelope diplomático. A indignação hipócrita que advém de um elogio abaixo de ‘estelar’.

Pensando bem, não temos o ângulo político. Isto aplica-se a todas as áreas da vida humana e da nossa comunidade. É o que nós somos.

Von Trier, vim a saber mais tarde (para meu espanto), escreveu “Dogville”. Não foi baseado numa peça, apesar de ter sido apresentada como uma. Fiquei espantado não só por descobrir que ele o escrevera, mas também por descobrir que ele o conseguia escrever. Apanhara um vislumbre do que Von Trier conseguia dizer em Breaking the Waves”, e apanhara outro vislumbre do homem que ele é em Melancholia. Mas aqui, com Dogville”, vi a sua habilidade para capturar a essência humana. Tens de a conhecer de dentro para fora para a reproduzir tão bem. Nunca irei subestimar Von Trier de novo.

Se existe uma forma correta de exercer poder (quer seja social, político, económico ou artístico), um que não inclua a distribuição de agonia indiscritível para os mais pobres entre nós, não a vimos ainda. O quão bem-intencionado poderemos ser parece não importar.

Penso que Von Trier se inclui a si próprio e ao seu trabalho neste pensamento.

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