Chernobyl, a nova minissérie da HBO, foi para o ar no início de maio e narra os eventos que se desenrolaram na Central Nuclear de Chernobyl em abril de 1986, perto da cidade de Pripyat, na Ucrânia.
Os cinco episódios de Chernobyl seguem a explosão no quarto reator da Central e a precipitação radioativa que matou centenas de socorristas, engenheiros e outras tantas pessoas nas primeiras duas semanas. Adicionalmente, é também efetuada uma abordagem política da altura, e como é que isso afetou os envolvidos no incidente.
Para a HBO, esta série não podia ter chegado num momento melhor. Ao notar-se cativante e evocativa, “Chernobyl” é uma lufada de ar fresco após a discórdia acerca da temporada final de “Game of Thrones”. É, acima de tudo, uma narrativa crua que deixa os expectadores atordoados e com ânsia de descobrir mais informações sobre o tema.
Segundo avança a agência Reuters, o sucesso da minissérie causou uma reviravolta no turismo da cidade de Pripyat e na Central de Chernobyl.
De acordo com dados fornecidos pela “SoloEast tour”, uma empresa que efetua visitas à Central, a empresa “viu um aumento de 30% dos turistas a ir para a área em maio de 2019”, acrescentando que “as reservas de junho, julho e agosto aumentaram cerca de 40% desde que a HBO começou a transmitir a série.” Outro guia de turismo que efetua visitas a Chernobyl afirmou que é “expectável um aumento similar de 30-40% por causa da série”.
Efetivamente, “Chernobyl” transformou-se num alvo poderoso dos holofotes das pessoas num período curto de tempo. E isto não sucedeu pela força de um aglomerado de personalidades de alto gabarito no elenco, de criadores com um nome firmado na indústria ou por cenários de grandes dimensões. Em contrapartida, deveu-se à excelência como abordou uma temática tão negra da história humana.
O início é, desde logo, uma contravenção direta e deliberada com a maioria dos projetos que narram um espetáculo dramático. A série começa com Jared Harris para um gravador antes de se enforcar. Sim, é este o nível.
Até mesmo o próprio desastre, quando testemunhado pela primeira vez, é visto apenas através de uma janela distante da sala, e o ocupante da sala nem percebe isso. De seguida, somos rapidamente guiados à sala de controlo do Reactor 4, aquele que acabou de explodir, mas mesmo assim, a gravidade da situação não parece aparente.
Os homens surgem em negação perante o terror que desencadearam, e em relação à tragédia que está por vir. Quando confrontados com a realidade, os responsáveis não tomam medidas, e acabam simples por mentir.
E é esse tema que faz parte dos cinco episódios. Operadores e funcionários de fábricas a inventar mentiras para dar a ideia de que o caso não é tão grave como aparenta, ao mesmo tempo que vomitam enquanto sucumbem ao envenenamento por radiação. Ao mesmo tempo, os políticos constroem mentiras ainda mais complexas para manter a população e o mundo no escuro sobre a escala aterrorizante do desastre.
No núcleo de todas as mentiras está Dr Valery Legasov (Jared Harris), um especialista em energia atómica. Legasov é convocado por Boris Scherbina (Stellan Skarsgård), membro do Comité Central soviético, para investigar o incidente e coordenar a resposta local. Contudo, o doutor percebe rapidamente que não há muito a acrescentar à versão oficial dos acontecimentos, e acaba por receber ajuda de Ulana Khomyuk (Emily Watson), na tentativa de salvar o mundo de um desastre.
Embora existam várias vertentes que seguem um aglomerado de personagens diferentes em todos os episódios, são estes três personagens que simbolizam o coração de “Chernobyl”, e isso é em grande parte graças às performances de Harris, Skarsgård e Watson. O trabalho deste três é, sem tirar nem pôr, sensacional.
Na sua interpretação do discreto, mas cada vez mais desesperado, Legasov, Harris apresenta uma performance que pode vir a definir a sua carreira. Na consciência comum, haverá o Jared Harris “pré-Chernobyl”, o ator de caráter e respeitado desde o salto de alta dimensão em “Fringe”, e há o Jared Harris “pós-Chernobyl”, um dos melhores atores a trabalhar atualmente.
É claro que, nos últimos anos, o ator seu múltiplas provas do seu talento, mas é aqui que consegue mostrar toda a sua fibra. Com Harris, o público consegue envolver-se na tapeçaria vasta da história, e acaba por sentir-se genuinamente frustrado com o conflito moral que a personagem enfrenta na sua demanda.
Scherbina, que é retratado por Skarsgård, surge na condição de político em início de carreira, dedicado ao Partido acima de tudo, e na forma como está imerso na verdade desagradável de Chernobyl. Devido ao desastre, à resposta e à intransigência dos seus superiores, ele torna-se cada vez mais amargurado com a situação em que se encontra.
A dinâmica entre Harris e Skarsgård é soberba. Existe uma energia estática entre ambos, com o conflito e até mesmo em relação ao momento de luz ocasional entre eles, que oferece respiração essencial entre a tensão opressiva da série.
E tal como tem feito tantas vezes ao longo da sua carreira já ilustre, Emily Watson brilha num papel que poderia servir de instrumento rotineiro para os vários dispositivos de enredo. Khomyuk, uma cientista orientada na busca incessante da verdade, é a única personagem de ficção do elenco principal, visto que é “colocada” num grupo de cientistas da vida real que auxiliaram Legasov e Scherbina após o desastre. Ainda assim, ela encaixa-se bem na narrativa, mesmo que a sua história seja paralela à trama primordial, sendo frequentemente usada para ilustrar os horrores das conseqüências, o poder da KGB ou simplesmente para colocarmos a questão “o que diabo aconteceu aqui?”.
Enquanto o espetáculo concreto é substituído pela narração hermética, há certamente muitos momentos empolgantes de tirar o fôlego ao longo da série. A série é tratada com tanta delicadeza, tanto pelos atores quanto pelo argumentista e o criador, que a agonia de algumas cenas é duplicada pela profunda empatia que sentimos por cada personagem que encontramos.
A consistência das performances dos atores principais aos personagens secundários é uma prova do trabalho de Johan Renck, que até agora era conhecido principalmente como diretor de videoclipes, e do escritor / produtor Craig Mazin, que conseguiu equilibrar a aderência ao fator histórico num drama totalmente emocionante.
“Chernobyl” não é uma acusação do comunismo, nem é uma campanha contra a energia nuclear. Em vez disso, concentra-se na característica humana comum de mentir e no que isso pode custar, não apenas na grande escala da geopolítica, mas ainda mais num nível pessoal. Por conseguinte, a série ganha por isso mesmo, isto é, por não procurar sucesso no fator político, mas sim no que é ser-se humano.
O design de produção nota uma lealdade incrível ao fator histórico em muitos aspectos, auxiliado por um excelente trabalho de fotografia e edição.
Hildur Gudnadottir, que trabalhou na banda sonora de filmes como “Mary Magdalene” ou “Sicario 2: Soldado”, atinge aqui a maioridade ao compor uma paisagem sonora que envolve o espectador.
Gravada ao utilizar os sons feitos por uma Central nuclear real (um fora de uso na Lituânia que foi usada para filmar grande parte desta série), a banda sonora é completamente orgânica para o visual, elevando o drama a um nível totalmente novo. Gudnadottir pode ter sido uma protegida do grande Johann Johannsson, mas aqui demonstra a sua autoridade como mestre da arte.
“Chernobyl” é uma experiência visceral rara. Por mais que possamos auferir conhecimento prévio em torno do tema, esta série obriga-nos a efetuar uma reflexão espontânea sobre o caos. Por conseguinte, deixa um misto de sensações desagradáveis na mente, não somente devido ao facto de ter sido um desastre com enormes proporções, mas porque espelha também o quão barata pode ser a vida de uma pessoa.