No que à sétima arte diz respeito, os cineastas costumam afirmar-se, projeto a projeto, de forma gradual ao longo dos anos. Rian Johnson é um dos casos mais atípicos de que há memória . Em 2017, a sua inesperada aposta na famosa saga Star Wars desafiou um público para lá de intransigente, tornando-se um verdadeiro divisor de águas entre os fãs. Quer se admire, ou se despreze, poucos ficaram indiferentes face a este incontornável diretor norte-americano, que se consolidou de forma ampla nos últimos anos.
A sua mais recente produção, fortemente inspirada nos romances policiais de Agatha Christie, é uma nova entrada no mesmo universo do êxito crítico e comercial de há três anos. Knives Out destacou-se pela positiva num ano já repleto de grandes lançamentos, por isso não precisou de muito para que a produtora do cineasta, T-Street Production, conseguisse o apoio necessário para alavancar pelo menos mais duas produções originais. Graças à distribuição internacional por parte da Netflix, foi possível o presente lançamento de Glass Onion: A Knives Out Mistery nesta época festiva.
Abandonando o ambiente classicista aristocrático (característico da ficção literária de whodunit) do primeiro filme, o detetive Benoit Blanc (Daniel Craig) é convidado para uma ilha luxuosa na Grécia. Aqui depara-se com outros distintos convocados: Lionel (Leslie Odom Jr) cientista chefe da empresa de tecnologia Alpha; Claire (Kathryn Hahn) candidata à eleição do senado americano; Birdie Jay (Kate Hudson) modelo e designer de moda juntamente com a sua assistente Peg (Jessica Henwick); Duke (Dave Bautista) um popular streamer de videojogos e a sua namorada Whiskey (Madelyn Cline); e por fim, Andi Brand (Janelle Monáe), cofundadora da Alpha.
Mas o que têm em comum estas excêntricas figuras? Todos estão associados ao anfitrião, Miles Bron (Edward Norton), multimilionário e cofundador da Alpha, que os convidou para a sua ilha privada, Glass Onion, com o objetivo de fazer de um verdadeiro ‘murder mistery weekend‘. Como seria de esperar um crime fatídico ocorre e caberá agora ao renomado e perspicaz detetive Blanc ajudar a solucionar o mistério. Uma premissa simples à partida, tal como Knives Out (2019), mas que esconde muitas camadas que só o desenrolar do enredo poderá trazer ao de cima.
Para um crítico é sempre difícil uma análise que requer do espetador total sigilo em relação a spoilers, pois o aproveitamento da experiência está, senão todo, na descoberta e no desvendar da trama. Assim, sem abrir mão das várias surpresas e reviravoltas, é seguro afirmar que é um mistério bem construído. Rian Johnson foi até bastante generoso nas sucessivas pistas que dá ao espetador, fazendo-o tropeçar propositadamente nelas, pelo que para alguns poderá ser o suficiente para chegar ao cerne do caso antes do filme chegar sequer à metade da sua duração.
Não obstante, a primeira longa-metragem de Blanc, a meu ver, foi bem mais coesa, quer ao nível da relação entre as personagens, quer quanto ao seu dramático desfecho. Aqui, nem tudo funciona, algumas coisas sobressaem por estarem a mais, outras necessitavam de maior exposição e aproveitamento. Positivamente, um dos trunfos da realização está no uso constante de flashbacks, entre passado e presente, bem como de diferentes pontos de vista entre os ilustres convidados, que mudam a perceção do espetador relativamente a quem é afinal o assassino da vez.
Em relação ao elenco, mesmo com um orçamento semelhante ao anterior, este acaba reduzido a um núcleo mais pequeno, contanto, como consequência, com menos figuras de peso. Ainda assim aquelas que Rian Johnson trouxe são bem aproveitadas, ficando todo o destaque para Edward Norton, um ator extremamente competente mas que nos últimos não tem tido a visibilidade e presença de outrora, e é claro do protagonista do par de filmes, Daniel Craig. Embora as interpretações e presenças sejam de louvar, o argumento peca por não criar empatia suficiente com as personagens, tal como Birdie e Duke, que em certos momentos críticos, nos deveriam levar a torcer por elas.
Como a ação do filme é, praticamente, toda confinada a uma ilha pequena e àquelas personagens caricatas que referi, todo o potencial da história residia não apenas na complexidade e resolução do ‘mistério do dia’ mas, também, nos envolvidos no caso. E isso deixa muito a desejar, mesmo depois de Johnson o ter feito brilhantemente no primeiro filme com um elenco bem maior e desafiante, do aquele que aqui temos. Seja como for, este é um problema que só fica mais nítido numa segunda visualização, uma vez que na primeira o foco está no nosso interesse em apanhar as pistas e resolver, por nós mesmos, o crime enigmático.
Esta escolha é também justificada pelo tom do filme. De situações irónicas transita abertamente para o humor negro e sátira com facilidade, o que contribuiu para uma sensação de autocrítica do próprio subgénero que homenageia. O que honestamente é perfeito, pois, com tantas obras de whodunit pelo caminho é sempre bem-vindo, uma nova abordagem, mesmo que não seja assim tão disruptiva, tal como a personagem de Edward Norton gosta de caracterizar o seu grupo de convidados. Além disso, tem inúmeros momentos de subversão de expetativas, tal como o realizador habitou os seus fãs nas últimas produções, que aqui servem para baralhar e trocar as voltas aos palpites mais extrapolados do espetador, de um enigma por si só, para lá de presumível.
A realização aproveita o pequeno espaço ação em Glass Onion, para elaborar um clima de isolamento acertado, que a propósito é usado no contexto da pandemia e até como justificação num momento-chave da história. Na globalidade da narrativa acaba por ser, como referi, toda uma paródia da sociedade dos dias hoje. Substituindo a alta classe social aristocrática da longa-metragem de 2019, pelos magnatas da tecnologia, da forma como vivem e gastam a sua fortuna, que aqui rendem os momentos mais cómicos do filme.
No geral, Glass Onion: A Knives Out Mistery supera o anterior no que à crítica social e subversão de expetativas diz respeito, porém, o núcleo duro de desenvolvimento entre personagens, o clímax da revelação e as suas respetivas consequências ficaram muito aquém da qualidade do primeiro. Ainda assim é uma das poucas produções exclusivas da Netflix que, a meu ver, considero obrigatória, estando no topo da lista de filmes deste serviço de streaming. Se não o viram, vale totalmente a pena, nem que seja para vos colocar à prova e constatarem se o vosso instinto nato de detetive ainda está intacto.