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Blonde – Crítica Filme

A Deusa, uma Musa e os erros de Dominik

by João Pedro

“Blonde”, de Andrew Dominik, começa, de forma bastante adequada, com o piscar das lâmpadas. Em vários momentos breves e cintilantes, vemos uma onda de imagens: câmaras a piscar, holofotes a rodopiar de vida, homens a rugir de excitação (ou raiva – às vezes é difícil perceber a diferença) e no centro de tudo está ela, Marilyn Monroe (interpretada por Ana de Armas), a fazer a sua pose mais icónica enquanto uma rajada de vento sopra o vestido branco. É um começo que faz sentido para um filme sobre uma versão ficcional da vida de Monroe, que enraíza o público no mundo e no espaço de uma estrela de cinema. Pena que não se desenrole com dignidade.

Descaradamente, “Blonde” não se resume apenas à recriação de momentos célebres, nem apenas à narração dos maiores destaques da carreira de Marilyn Monroe. Trata-se, em vez disso, de exposição e, especificamente, do ato de se expor – pela arte, pela fama, pelo amor – e as maneiras pelas quais o mundo costuma reagir a essa vulnerabilidade crua. No caso de “Blonde”, vemos como um mundo de homens se aproveitou da vulnerabilidade de uma mulher, e, desta forma, como conseguiu controlar a sua imagem e minimizar o seu talento.

E, infelizmente, “Blonde” nem sempre consegue expor o melhor retrato desta realidade. Há momentos em que o cineasta parece brincar ainda mais com a excessiva sexualização e a aparente infantilidade de Monroe, que tem corrido desenfreadamente durante décadas, e que tenta torná-la nada mais do que uma sexpot ingénua sem qualquer vontade própria. Porém, também há momentos em que o enredo pretende honrar estados de espírito.

Baseado no romance de Joyce Carol Oates, com o mesmo nome, o filme não tenta contar a verdadeira história da vida de Marilyn Monroe. Em vez disso, a proposta incide num retrato impressionista de como Norma Jeane Mortenson, a mulher que se tornou Marilyn, foi usada e abusada pelas mesmas pessoas que deveriam protegê-la e apoiá-la. Os culpados são muitos e abrangentes – desde a mãe abusiva e emocionalmente instável de Marilyn (Julianne Nicholson) até ao segundo marido (interpretado por Bobby Cannavale).

Blonde. Ana de Armas as Marilyn Monroe. Cr. Netflix © 2022

Quase todas as personagens são baseadas em pessoas da vida real de Monroe, mas as representações das mesmas surgem, por vezes, muito desfasadas da realidade. E é importante referir isto porque, para alguns espetadores, a decisão do filme de encarar a vida de Monroe como sendo potencialmente mais traumática do que realmente foi, pode simplesmente ser vista como um pedido demasiado superlativo. O filme, para seu crédito, também não tenta apresentar-se como uma biopsia fundamentada.

Andrew Dominik, que sempre foi propenso à experimentação visual, usa praticamente todas as proporções conhecidas em “Blonde”. O filme, desta feita, não altera apenas repetidamente da fotografia em preto e branco para o tecnicolor, mas também vai alternando entre imagens widescreen 16:9 e composições menores de 4:3. Às vezes, essas instâncias de invenção visual parecem aleatórias, como se existissem apenas para nos desorientar, ao passo que, em outros momentos, sentem-se honestas e calculadas.

Vejamos, por exemplo, como a proporção do filme muda na noite em que Marilyn espera conhecer o pai. O filme torna-se, por breves instantes, numa imagem panorâmica à medida que Marilyn entra no seu quarto de hotel, refletindo a importância emocional que coloca no momento. Todavia, tudo começa a esmorecer, numa proporção diminuta, uma vez que ela percebe que não é o pai que a espera, mas a personagem de Cannavale. E, por curiosidade, esta cena oferece um momento de atuação subtil, mas precisa – a mão de Cannavale rodeia lentamente o pescoço de Armas, enquanto ele professa o seu amor por ela: ou seja, o seu próprio corpo, sem saber, a prefigurar o futuro tóxico e abusivo daquela relação.

No centro das muitas imagens surreais e das cenas mais provocantes de “Blonde”, está Ana de Armas, cuja performance parece calibrada para o filme. Existe um descontentamento sempre presente, muitas vezes assustador, entre a atriz e a mulher que ela está a interpretar. Parte disso tem a ver com o sotaque cubano de De Armas, que nunca desaparece, mesmo nos momentos em que a própria atriz pretende destacar a maneira ofegante de falar de Monroe. Seja como for, há uma qualidade crua na atuação de De Armas, que não atinge somente picos de êxtase em  muitas cenas emocionalmente difíceis de “Blonde”, mas também impregna os momentos em que ela recria o trabalho de Monroe em filmes como “Some Like It Hot” e “Gentlemen Prefer Blondes”, com toques adicionais de tragédia e raiva.

Blonde. Ana de Armas as Marilyn Monroe. Cr. Netflix © 2022

É pena que o filme falhe ao tentar subir ao nível da sua musa. E falha cabalmente. Isso é evidenciado pelo facto de existirem muitas cenas em “Blonde” – especialmente na segunda metade – que exigem que De Armas esteja de topless ou totalmente nua; um detalhe que ameaça endossar ainda mais a sexualização que há muito atormenta o legado de Monroe. Em adição, Dominik também faz questão que Monroe, de Armas, trate (constantemente) todos os homens da sua vida por “daddy”, uma decisão que poderia ter sido tolerável se tivesse sido usada com um pouco mais de moderação.

O uso frequente de “daddy” por parte de De Armas é, em última análise, um sintoma da própria incapacidade de Dominik de sentir os momentos em que o menos seria, efetivamente, mais. O mesmo pode ser dito em relação às várias ocasiões em que a câmara “entra” na barriga de Monroe para mostrar versões CGI dos seus filhos – que nunca chegaram a nascer – a falarem com ela (sim, literalmente). O filme também apresenta um conjunto de escolhas musicais terrivelmente irónicas, incluindo o momento em que “Bye Bye Baby” começa a tocar segundos depois de Monroe ser coagida a fazer um aborto que não queria.

Estes erros constroem, para mim, o leque de muitas das imperfeições que impedem “Blonde” de ser bem-sucedido. No entanto, mesmo assim, Dominik entrega uma história de solidão, de pesar e anseio emocional – e é um trabalho relevante nesse aspeto, embora use Monroe injustamente.

No fim, não são as várias homenagens à carreira de Marilyn Monroe que enfatizam a importância de “Blonde”. Em vez disso, são as cenas mais silenciosas que acabam por deixar as marcas mais flagrantes, como quando De Armas decide procurar uma gorjeta em casa, apenas para descobrir que o estafeta já tinha ido embora quando ela regressa para lhe dar o que quer que seja. A forma como a mão de De Armas paira no ar, os cinco dólares ainda presos na palma da mão, mesmo depois de ela perceber que não há ninguém do outro lado do portão. É um tipo específico de desgosto. O desgosto de percebermos, tarde demais, que (ainda) não conseguimos encontrar alguém disposto a esforçar-se tanto por nós como nós estamos dispostos a mover mundos por esse alguém.

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