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Black Mirror: Reflexo perverso de uma futura realidade cada vez mais presente

by David Raposo

Contando já com cinco temporadas, oito vitórias nos Emmy Awards e uma legião de seguidores constantemente a crescer, Black Mirror solidificou-se como uma das séries mais marcantes de sempre. Com um olhar crítico, Charlie Brooker reinventa-se como um verdadeiro George Orwell da atualidade, apontando o dedo e denunciando progressivamente todos os possíveis – ou pior, já presentes – perigos que a tecnologia lentamente vai propagando enquanto se instala nesta nova sociedade em que vivemos.

Sem preconceitos nem tabus, esta antologia explora um terror perverso e crepitante, agarrando mesmo nos mais pequenos avanços tecnológicos e conseguindo sempre mostrar um lado aterrador que podia facilmente ter passado despercebido ao olhar mais desatento mas nunca pondo de parte todas as rachas e falhas que a sociedade sempre mostrou ao longo dos anos, usando tecnologia meramente como um veículo para desmascarar – ou melhor, refletir – todas estas.

Relações amorosas, jogos políticos, uma obsessão crescente por compras e muitos mais enredos são entrelaçados e assistidos, episódio a episódio, sem nunca mostrar fraqueza criativa, para lá de uma crítica social, Black Mirror mostrou ser uma plataforma onde escritores e atores talentosos, com ou sem muita experiência na área, puderam apresentar os deus dotes e com sucesso, fazendo de cada episódio uma lufada de ar fresco pela originalidade e garra, nunca tendo medo do absurdo e fazendo do mesmo o seu ponto forte, deixando para trás um conjunto de histórias memoráveis com atuações dignas dos mais prestigiados prémios.

Mais do que uma série, Black Mirror é um olhar reflexivo para o expectador, mostrando de volta o que não queremos ver mas sim o que devíamos, obrigando por fim a que confrontemos os nossos verdadeiros demónios, fazendo da experiência difícil de digerir, mas completamente inesquecível.

Caracterizar uma série tão complexa e diversificada em que cada episódio conta com uma nova equipa, uma nova narrativa e um novo estilo, é algo um tanto superficial, foi por isso que a equipa do The Golden Take elegeu entre si o top 5 de todos os episódios que até à data existem. Estes não devem ser considerados como os melhores episódios, vai sempre depender de gosto pessoal e, numa série como esta, todos os episódios poderiam tomar o seu lugar no topo, mas estes são, para nós, episódios que combinam uma excelente narrativa com uma qualidade de produção que merecem ser referidos.

5 – Bandersnatch

Misturando e torcendo os conceitos que conhecemos de realidade e ficção, este episódio interativo vai para lá de uma mera crítica ou reflexão ao efeito da tecnologia no nosso quotidiano, aqui vamos encontrar-nos com a responsabilidade de guiar e tomar decisões na vida de Stefan Butler, um programador de jogos que procura adaptar o livro de escolhas “Bandersnatch” num jogo de computador com a mesma lógica.

Com o avanço da narrativa o episódio torna-se progressivamente mais retorcido, permitindo repetições nas decisões tomadas, revelando cada vez mais informações acerca da vida das vítimas das nossas escolhas e forçando os jogadores a refletirem no peso da manipulação que estão a infligir. Inteligente, inovador e o merecido vencedor de 2 Emmy Awards, este reconto moderno e não-linear acerca do clássico livre arbítrio é um episódio a não perder.

© Netflix

4 – San Junipero

Com uma narrativa e atuações de uma qualidade elevada, este episódio ultrapassa a típica crítica tecnológica de Black Mirror. O episódio desenrola-se em torno do romance de Yorkie e Kelly, que se conhecem numa discoteca da cidade de San Junipero em 1987.

Com um estilo bastante nostálgico, tanto em estilo como em soundtrack, viajamos atrás no tempo neste conto que explora de uma forma brilhante temas como sexualidade, mortalidade e eutanásia, misturando e debatendo os mesmos ao longo de todo o episódio. Vencedor de 2 Emmy Awards, San Junipero, um episódio onde nem tudo é o que parece, revela um lado mais sensível e bela da antologia, mantendo todos os elementos que fazem da mesma tão interessante.

© David Dettmann/Netflix

3 – Hang the DJ

Fazendo uma não intencional referência ao clássico de culto “The Lobster”, neste brilhante episódio somos confrontados com uma realidade onde uma aplicação de encontros românticos promete encontrar a alma gémea com uma precisão de 99,8% mas, para isto, todos os participantes devem seguir as instruções de um dispositivo que lhes é dado, passando de relação em relação com durações pré-definidas enquanto o dispositivo calibra os gostos e personalidade do participante.

Seguindo a história em particular de Frank e Amy, acompanhamos estes dois enquanto começam a questionar-se acerca da lógica e do sistema onde ambos vivem, levantando questões bastante presentes na realidade atual, passando pelo estado de relações amorosas e como estas são influenciadas pelas cada vez mais presentes “dating apps”  e refletindo também em como tudo isto se interliga com a cada vez mais presente noção de solidão pela qual todos nós vivemos e sentimos no nosso quotidiano.

© Netflix

2 – The Entire History of You

Com fortes e marcantes atuações, “The Entire History of You” pega nos clássicos conceitos de “O que aconteceria em certas discussões se eu tivesse gravado tudo o que aconteceu” e “Como seria se eu pudesse gravar todas as minhas memórias” e mistura-os numa intensa e complexa narrativa acerca de Liam que, após um jantar entre amigos, começa a duvidar da relação entre a sua mulher Ffion e o seu amigo Jonas. Dotado da habilidade de poder rever as suas memórias, acompanhamos Liam enquanto este procura e revê todo um conjunto de memórias e detalhes enquanto tenta perceber se, de facto, há razão para desconfiar da sua própria mulher.

Agarrando na relevância da cada vez maior facilidade que temos de guardar momentos da nossa vida e quotidiano em fotografia e vídeo, bem como partilhar os mesmos com qualquer pessoa o comediante Jesse Armstrong escreveu o poderoso guião deste episódio que conta com uma dinâmica excelente entre os dois atores principais que receberam a liberdade criativa de improvisar falas e reações, fazendo de cada interação em ecrã explosiva e repleta de emoção, fazendo-nos pensar por vezes se não estamos realmente a ver a queda de um casal real.

© Netflix

1 – White Christmas

Desenvolvido como um episódio especial de Natal e fazendo de despedida final da série, numa altura onde a Netflix ainda não tinha adquirido os direitos à série, Charlie Brooker escreveu este enredo com toda a sua paixão e alma, deixando para trás referências e alusões a episódios anteriores.

Contando a história de Matt e Joe, enquanto estes trabalham numa cabana remota no meio de um deserto de neve que, para passar o tempo, contam um ao outro as histórias das suas vidas. Enquanto as histórias vão sendo contadas, esses mesmos eventos vão sendo mostrados em ecrã, o que acaba por realizar um conjunto de três mini histórias que, inicialmente, parecem independentes entre si.

Com uma das narrativas mais complexas e interessantes de todas as temporadas, “White Christmas” levanta imensas questões e torna-se fundamentalmente uma análise crítica de temas como inteligência artificial, crimes e a proporção de castigos envolventes, bem como todos estes influenciam e podem influenciar a nossa vida em sociedade. Contando, como sempre, com atuações poderosas e uma escrita complexa e apaixonada, apesar de não ter sido, este seria sem dúvida o derradeiro adeus a uma das antologias mais interessantes algumas vez feitas.

© Netflix

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