Para uma série que é literalmente derivativa, Better Call Saul tem sido surpreendemente original ao longo das suas cinco temporadas, algo que quebra a regra universal de que spin-offs têm de ser sempre piores que as séries de onde nasceram. Better Call Saul tornou-se em algo muito maior: não só é uma série que segue firmemente as passadas do seu antecessor, como também é um comentário a Breaking Bad, e um “companion show” fiel.
Ambas caem na bem-definida categoria de estudo “Difficult Men”, criada por anti-heróis a partir do final dos 90s: The Sopranos, The Wire, Deadwood, Mad Men, Breaking Bad. O que acontece ao homem que vive num mundo em declínio? Breaking Bad será, talvez, o exemplo mais puro do género, pois enquadrou esta questão nas condições mais austeras: um professor de química, pai de família, converte-se a chefe de império de droga graças a um cancro e a pobreza.
O que me surge na mente é o seguinte: Walter White, tal como Breaking Bad, tem uma formulação bastante simples: ele fez o que tinha de fazer. Os princípios da sua personalidade eram bastante básicos, ou até primários. Ele amava a família, estava a morrer, e na sua lógica retorcida a única forma de os ajudar era através de metanfetaminas.
Este negócio, por si, também tinha requisitos igualmente simples. White teria de matar alguém de vez em quando. Por exemplo, no início da primeira temporada, ele faz uma lista de prós e contras de matar Krazy-8. De um lado, “homicídio é errado”. Do outro, “Ele irá matar a minha família se o deixar ir”. White não tem bem escolhas aqui. Aliás, ele tem escolhas que não parecem escolhas enquanto as está a viver. O declínio moral de Walter está apegado inteiramente à realidade material que ele enfrenta. Ele apalpa o seu caminho cegamente até o seu final, e a audiência vai atrás com ele.
Better Call Saul não funciona assim. Nós sabemos o final. O enquadramento da série é o de uma prequela, o que quer dizer que já sabemos que McGill irá tornar-se no Goodman, e mais tarde no manager alcoólico de um Cinnabon. Seguimos McGill na viagem até ambas as conclusões: o falhado renegado e o idiota hiperconfiante que não tem qualquer ética. Walter White foi vítima de circunstâncias, cambaleando cegamente pelo mundo, procurando tornar a sua inevitável morte menos inútil. James McGill é um homem com o destino escrito, que avança inexoravelmente na direção de um Cinnabon, e nós sabemo-lo.
No entanto, aqui não podemos culpar o mundo nem a realidade à sua volta. McGill não tem cancro, nem uma família que precisa de se suportar depois de morrer. A questão que se levanta agora de forma exímia por Better Call Saul é esta: ele é Jimmy McGill ou é Saul Goodman? E se é ambos, como é que existem em sincronismo?
Aqui atingimos o propósito e a verdadeira magia da escrita de Gilligan, e a polaridade das duas séries. White corrói-se como se estivesse a ser atacado por cancro. McGill cresce e respira como se ele próprio fosse o cancro.
E assim, questionamos de onde vem Better Call Saul: Breaking Bad. A série mantém-nos em xeque e a reavaliar Breaking Bad constantemente. Foi Walter White uma vítima da circunstância, afinal? Relembro a brilhante cena da temporada final, em que Walter confessa a Skyler o porquê de se ter tornado num drug dealer, todos aqueles anos depois: “I was good at it.”
É díficl não se fazer algo em que se é bom, mesmo que envolva homicídio em massa.
McGill, por outro lado, é bom a cometer fraudes. O que, por si, quer dizer que é bom a fingir ser o que não é. Menos o que mais quer ser, um bom advogado.
Gilligan atingiu algo que nenhuma série da golden age da televisão não conseguiu: pegar numa série de culto e virá-la do avesso. De alguma forma, funciona perfeitamente.
2 comments
Mais uma excelente crítica de Miguel Pereira 👏🏼
Muito obrigado pelo feedback, Miguel! 😀