A Era Dourada do cinema viveu repleta de cenários projetados e construídos de forma esbelta, com explosões de cores num ecrã prateado e números musicais inspiradores. Personalidades como Fred Astaire, Cary Grant, Audrey Hepburn, Grace Kelly e Judy Garland marcaram a indústria e, desta forma, participaram na criação do que vivemos hoje. E é, provavelmente, isto que está a faltar ao cinema moderno: um toque de diversão misturado com toda a panóplia de drama e ação. “Barbie” apresenta uma tonalidade dessa época dourada, com muita cor, embora exponha uma mensagem verdadeiramente primordial. Tão hilariante como comovente, mantém um meta-comentário perfeitamente consciente, fundido com uma conversa direta sobre consumismo, feminismo e a necessidade de curar a nossa criança interior.
Interpretada por Margot Robbie, Barbie vive em Barbieland – e quando a sua imagem perfeita começa a desmoronar-se, tem de se aventurar no mundo real para voltar a ser ela própria. A acompanhá-la nesta aventura está o seu Ken, interpretado por Ryan Gosling, sendo que ambos terão de conhecer o mundo que acreditam ter tornado perfeito através da existência de Barbies.
A primeira, e mais interessante, façanha da “Barbie” é o facto de contar uma história sobre um brinquedo normalmente apreciado por crianças, sem alarde. O drama é sofisticado e o humor é adulto. Embora haja uma peça-chave do filme que parece retida, talvez pelas expectativas da indústria, “Barbie” permanece fiel ao seu conceito absurdo sem se curvar à tendência de Hollywood de tentar suavizar os filmes adultos para um público mais jovem.
Por conseguinte, como ferramenta de sucesso, existem dois tipos de humor a acontecer ao longo do filme: um meta-humor baseado na Barbie, em que a piada está a ser concebida sob o comando do que significa dar vida a um mundo de bonecas, e um humor mais fundamentado, onde os personagens estão simplesmente a dar a sua opinião sobre o que se passa. É uma estratégia arrojada que funciona às mil maravilhas e o filme só pode existir com a liberdade que a argumentista e realizadora Greta Gerwig teve. A vantagem de “Barbie” é que Gerwig tinha uma visão clara do que o filme deveria ser e o que deveria representar.
Não vou escrever que estava à espera de um resultado final tão interessante, e tão pouco vou fingir que sou um grande conhecedor acerca de lutas de género e desigualdade. Porém, o que posso escrever é que, com base no currículo de Greta Gerwig (“Lady Bird” à cabeça), a excelência não surpreende. “Barbie” é muito mais do que apenas um filme divertido sobre a boneca, é uma aventura de auto-descoberta, identidade e o paradoxo plástico que é a Barbie. É um filme que analisa os fatores positivos e negativos de uma boneca na sociedade, o que representa e como afeta tantas pessoas.
De um modo geral, a agenda do filme sobre o lugar da Barbie no conceito de feminismo revela-se cheia de nuances. À medida que a própria Barbie faz uma viagem ao longo do filme, vemo-la primeiro aprender a verdade sobre o ideal feminino, depois sobre a masculinidade e, finalmente, sobre o que significa encontrar um caminho num mundo cheio de expectativas e realidades de género. A conversa que o filme está a ter com o público é astuta, com um ritmo que começa num lugar de claro absurdo, que nos guia depois a um tipo oposto de irrealidade e, depois, lentamente, vai-se deslocando para um meio-termo em que talvez as coisas não sejam exatamente justas, mas definitivamente realistas e, até certo ponto, ambiciosas. E tal como Barbie, Ken também está a aprender bastante ao longo da história. Mais uma vez, sem dizer muito, os Kens trazem uma das maiores reviravoltas do filme e, com isso, levantam algumas das questões mais interessantes sobre masculinidade e feminismo que ficaram, não obstante, um pouco sem resposta.
O diálogo espirituoso faz lembrar comédias de culto como “Clueless”. No entanto, a nível de adaptação, Barbie é a abordagem mais ousada a uma temática “infantil” desde “Where the Wild Things Are” de Spike Jonze. Os espetadores podem entrar na sala à espera de um determinado tipo de produto, mas é certo que deverão sair com algo muito mais maturado. O filme começa com uma homenagem a “2001: A Space Odyssey”, de Stanley Kubrick, e tal como sucede nessa obra, “Barbie” é sobre evolução, ao examinar como a personagem se encaixa no mundo atual e para onde é que pode ir daqui para a frente.
A Barbie existe num mundo de sonho idílico, longe de qualquer coisa que se assemelhe à realidade. Ao mesmo tempo, reflete as aspirações de todas as mulheres, quer queiram ser juízas, advogadas ou sereias. Neste filme, a Barbie fornece uma plataforma para todas as mulheres partilharem a sua frustração mútua. America Ferrera profere um monólogo poderoso sobre o sistema impossível que foi concebido para manter as mulheres afastadas do que quer que seja. Todavia, o filme não transforma os seus personagens masculinos em vilões. Com um segundo ato um pouco caótico à parte, “Barbie” é um exemplo do que o cinema tem de bom: o fator surpresa e de ousadia, assumindo, sem remorsos, riscos criativos que compensam de forma triunfante.
O que poderia ter sido uma história de nicho acaba por tornar-se universal com um núcleo emocional que surpreenderá o público. Neste momento, parece que não há nada que Greta Gerwig não consiga fazer.