Certa vez, Umberto Eco disse: “Dois clichés fazem-nos rir. Cem clichés comovem-nos. Porque sentimos vagamente que os clichés estão a conversar entre si e a celebrar um reencontro”. Eco escreveu esta frase a propósito de “Casablanca”, mas poderia muito bem ser dirigida aos trabalhos de James Cameron. Ele é um cineasta cujo amor por múltiplos clichés incide exatamente na fórmula com que resolve as suas contradições. É um realizador técnico, preciso, que vive atraído pela conceção do melodrama humano. De formas díspares, “The Terminator”, “Titanic” ou “Avatar” captam a imaginação do público com o compromisso das narrativas e com o controlo total da visão curiosa de um ser humano. Esses clichés, que se acumulam, têm o condão de nos manter no seu cativeiro, mais profundamente nas dificuldades dos personagens em exibição.
“Avatar: The Way of Water”, de James Cameron, é um filme com mais de uma década de minúcias de planeamento e produção, filmagem e pós-produção, que foi sendo adiado ao longo dos anos. Primeiro, porque o Cameron teve que aperfeiçoar a tecnologia de captura de movimento para oferecer o melhor resultado possível, e, em segundo lugar, porque foi vítima da sua própria ambição ao passar de uma proposta de duas sequelas promissoras para quatro colossais, o que gerou um mega processo de escrita por parte do realizador e da sua equipa de argumentistas – composta por Rick Jaffa, Amanda Silver, Josh Friedman e Shane Salerno.
Cameron recusou-se a fazer o que tantos cineastas fizeram em termos de franquias, isto é, o de improvisar o arco narrativo a partir da repercussão do sucesso nas bilheteiras. Esta decisão de produção, mais de acordo com a coerência artística de todas as sequelas e a disponibilidade concreta do elenco, do que com a economia orçamental – que definitivamente não ocorreu (porque os filmes em questão estão entre os mais caros na história do cinema) – resultou na filmagem paralela nos Estados Unidos e na Nova Zelândia da segunda e terceira partes – mais o início das filmagens da quarta longa-metragem, um processo que durou cerca de três anos no total. É um panorama que, por sua vez, faz-se valer da inteligência de Cameron na hora de pressionar a Walt Disney Company, para que não descuide o marketing planetário dos filmes concluídos ou quase: “Avatar 3” tem previsão de lançamento para 2024 e, por sua vez, os restantes deverão chegar em 2026 e 2028. E é difícil não irem recebendo “luz verde”.
Desta feita, era mais do que evidente que depois de explorar as florestas e os ares de Pandora, lua que orbita o planeta Polifemo, o gigante gasoso do sistema estelar Alpha Centauri, Cameron voltaria à sua obsessão habitual, os oceanos e mares de “El Abyss”, “Titanic”, “Ghosts of the Abyss e “Creatures of the Depths” (estes últimos dois são dois documentários na categoria) e até do hilariante “Piranha II: The Spawning”.
A história principal é, mais uma vez, muito simples e começa onde a anterior tinha terminado: a expulsão da operação de mineração realizada por humanos em Pandora em busca de unobtanium, uma substância altamente valiosa que se assemelhava a ouro e borracha que era cobiçada por oligarcas europeus e locais durante o genocídio, bem como o processo de escravidão da Conquista da América. O argumento concede uma década de paz a Jake Sully (Sam Worthington) e Neytiri (Zoe Saldana) antes do regresso dos terráqueos, agora mais interessados na construção de uma metrópole semelhante a uma colónia, e na caça de enormes criaturas marinhas semelhantes a cachalotes para extrair um componente líquido do corpo do animal. O Coronel Miles Quaritch (Stephen Lang) regressa como um avatar paradoxal e com a dupla missão de se vingar do casal Na’vi, que o matou e, em adição, decapitar a “insurgência” indígena que se opõe ao imperialismo, o Clã Omaticaya de Sully, agora um pai de família e, portanto, mais vulnerável, medroso e até pacifista.
Com o pretexto narrativo de evitar colocar em risco os filhos – incluindo uma adolescente que nasceu, por obra e graça, do ventre do avatar correspondente à Dra. Grace Augustine (Sigourney Weaver) – e com a necessidade de deixar as selvas de Pandora em direção a ilhas paradisíacas, com o intuito de não serem encontrados, Jake, Neytiri e a sua família deixam a floresta para trás, e pedem ajuda ao Clã Metkayina, comandado pelo casal Tonowari (Cliff Curtis) e Ronal (Kate Winslet).
Ao longo de 192 minutos, Cameron narra com a paciência de um artesão de outrora, e recorre a todas as artimanhas da história de aventura familiar no exílio, ameaçada pela ganância capitalista e dos seus mercenários psicopatas. Por conseguinte, combina uma mensagem ambiental maravilhosa, os horrores da Conquista da América e a dinâmica paradigmática do western, além de vislumbres do cinema dos anos 60 e 70 que tendia a abordar as guerras de libertação e independência no Terceiro Mundo, e, de forma astuta, acrescenta à mistura todo um enredo sobre a caça indiscriminada de cachalotes entre os séculos XVIII e XX.
Dentro do longo tempo de execução, alguns podem sentir que muito acabou por gastar-se na construção do mundo, e que, assim, alguns dos pedaços da “Dança com Lobos” debaixo de água poderiam ser cortados. Todavia, as peças nunca se tornam arrastadas demais para espelhar a importância de Pandora. Existe uma necessidade inerente à tradução da beleza do mundo. E é a beleza de Pandora que acaba por perdoar algumas das lacunas mais questionáveis do filme no que ao argumento diz respeito.
Não obstante, é difícil não ficarmos envolvidos com o artifício de tudo – as performances de captura de movimento dos personagens azuis, a profundidade e os detalhes abrangentes da paisagem ou a maneira como a luz do sol quebra o mar azul claro. É uma conquista técnica impressionante. Mas nada dessa imaginação vívida – uma excursão de banda desenhada – importaria se a história em si e os personagens dentro dela não ganhassem vida de igual forma. Essa é a contradição final de Cameron a considerar: a falsidade elaborada, a enorme falsificação mecanizada, a trazer ideias de uma pequenez sensível. Uma obra de orçamentos astronómicos que se propõe a lançar um olhar sobre as alegrias da comunidade próxima com os outros e com a natureza, os prazeres restauradores da família, o sustento espiritual do deserto e a nobreza de nos opormos ao cálculo do lucro e fazermos o que está certo. Ao mesmo tempo, tudo isto consegue casar com a típica enxurrada de cenas de ação cativantes, e com a tradição daquele cinema hardcore paciente dos anos 80 que não abusava de cortes bruscos como uma montagem para públicos com défice de atenção.
James Cameron não deixou de criar uma nova Odisseia que termina com explosões e tiros, mas soube preenchê-lo com um amor tipicamente tranquilo pela natureza e pela filosofia de uma comunidade com rituais próprios, mas também com novas gerações que querem abraçar o futuro. Terminando como comecei, e porque Eco parece instalar-se aqui como uma luva: “Quando todos os arquétipos irrompem de forma descarada, mergulhamos nas profundezas homéricas”. Homero, não é. Nem será. Mas Cameron é suficientemente perspicaz para encher o ecrã com a força impactante que vigora no coração do oceano.