Home Novidades António-Pedro Vasconcelos: A seiva eterna de um contador de histórias

António-Pedro Vasconcelos: A seiva eterna de um contador de histórias

by João Pedro

António-Pedro Vasconcelos partiu a poucos dias de completar 85 anos. Um cineasta que trabalhou para se aproximar do seu público. Uma relação intimista. Falar nos seus filmes é falar na nossa cultura. “Jaime”, “Os Imortais”, “Call Girl”, “Os Gatos Não Têm Vertigens” são exemplos que fazem com que não possamos cair na tentação de engarrafar o cinema português no dos enredos da novela comercial. Muitos nomes lutam pela dignidade do cinema português. António-Pedro Vasconcelos era, é, e continuará a ser um desses nomes.

O pôr do sol, o de hoje, junto à parte que separa o cais de onde partiam os desconhecidos para os desconhecimentos das descobertas e o lado da Caparica, pronunciou-se sob o olhar esmorecido do adeus a um mestre. Foi aqui que descobri que Lisboa já não tem a figura imperial, chapéu e charuto, de António-Pedro Vasconcelos. O plano final de um dia, como o plano final de quem trabalhou planos íntimos para se aproximar de cada um de nós. 

“Passeei pela Sé, pela Costa do Castelo, mas também por Alcântara, a Ajuda, a Mouraria e a Madragoa, a Lapa (….), Santa Catarina e a Bica, a Baixa e o Chiado, onde a toda a hora nos vêm à memória os versos prosaicos de Cesário ou as cogitações metafísicas de Álvaro de Campos.

AP-V, in A Companhia dos Livros

Um homem que nunca temeu mostrar o que somos, que nunca tentou encostar as suas histórias à banalidade com que nos vamos deparando na panóplia de dramas na generalidade das televisões independentes. Um homem que filmou o horizonte, como o horizonte que, por fim, na última luz junto aos Jerónimos, também agora diz “corta”. Só que não corta definitivamente. Um corte, tal como o barco que corta o caminho regular até à outra margem. 

Decidi fazer cinema porque descobri que era possível ficcionar a realidade com a própria realidade.”

AP-V, in Um Índio em Pé de Guerra – Vida e Obra de António-Pedro Vasconcelos

Caminho que nos mostra as histórias de uma mulher que vende o corpo para sobreviver no luxo que é sobreviver com dignidade. Um caminho de um menino que vai trabalhar para resgatar o casamento dos pais. Um caminho de ex combatentes que nunca regressaram da guerra. Um caminho que nos mostra as histórias de gatos que passeiam, vadios, pelos telhados de Lisboa. Tantos outros. Sem medos. 

A técnica é apenas um instrumento. Mais do que com a câmara filma-se com a cabeça.” 

AP-V, in Um Índio em Pé de Guerra – Vida e Obra de António-Pedro Vasconcelos

Gatos em liberdade. Gatos que se esqueceram de perguntar aos humanos o que significa a palavra “vertigens”. Gatos que percorreram os caminhos da liberdade e que encontraram, nesta cidade, um pôr do sol seguro, onde em cada esquina há um amigo. Um plano que capta a luz de Lisboa. Um caminho que nos mostra a vida boémia do Parque Mayer, das peças escritas com maestria em combate à censura. Planos que se captaram para o público rir, chorar, aplaudir. Planos daqueles planos que fazemos para a vida. O cinema é um lugar de planos realizados. O cinema é esse refúgio. O cinema é a alma toda esplanada que se debruçou a mostrar a sua vida a quem se deixa levar pelo espetáculo das sensações. O cinema é o caminho de um gato vadio. O cinema é o caminho de um gato que não tem vertigens. O cinema é o caminho que não finda. Findando, vê, no pôr do sol (como este, deste plano não tão focado) o recomeço. “Ação”, diz o realizador. Ação é recomeço. E é aí que todos nós encontramos, na ação. Na ação de cada dia. Um plano de cada vez. Um plano de uma vida. A arte de uma vida. Cinema. E tudo isto rima com António-Pedro Vasconcelos.

“Há duas coisas que dão prazer na vida: não resistir às tentações e resistir às tentações.”

AP-V, in Diário de Notícias

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