Sean Baker é uma das figuras mais proeminentes, em ascensão desde a última década, do cinema norte-americano. Um cineasta que galgou além da antecâmara do cinema independente para ribalta das premiações anuais com rapidez – não sendo Anora (2024), produzido pela FilmNation Entertainment, exceção com a sua recém, e esperada, indicação para o Óscar de Best Picture. O que torna o caso de Baker um tanto ‘sui generis’ é que essa transição para o amplo reconhecimento, fora da bolha cinéfila e dos circuitos independentes, foi feita sem descurar da sua abordagem e estilo, com histórias que desafiam a representatividade do status quo.
Uma temática recorrente que cobre a filmografia de Sean Baker desde, pelo menos Tangerine (2012), prende-se com ‘O Sonho Americano‘. As suas narrativas exaltam figuras e grupos que vivem à sombra deste sonho de consumo por cumprir, numa realidade social dura, com as suas próprias contradições económicas e culturais. Se, em The Florida Project (2017), Halley luta por sobreviver e manter apoios estatais de forma a permanecer numa habitação que vive eclipsada (literalmente) pela Walt Disney World e, se em Red Rocket (2022), Mikey tenta superar um estado profissional de fracasso e miséria ao explorar e manipular aqueles ao seu redor, alimentando a ilusão de um sucesso que nunca realmente teve, em Anora (2024), temos uma protagonista que, aparentemente, alcançou a tão desejada ascensão social.

Anora (Mikey Madison) à semelhança de outras personagens que Baker já escreveu, é uma jovem de ascedência russa, uma trabalhadora que vive à margem, sendo uma stripper e acompanhante, num bar em Brooklyn. Até que num certo dia, a sua vida é virada do avesso ao aparecer um ‘príncipe’ Ivan (Mark Eidelstein), que embora de início pudesse apenas ser mais uma relação profissional entre tantas com um cliente, rapidamente se transforma em algo maior. Ivan vem resgatá-la da sua condição de exploração. Este acontecimento é uma disrupção com a jornada que os protagonistas de Baker costumam enfrentar, parecia mesmo que Anora havia encontrado o seu final feliz, não fosse Ivan, filho de um magnata russo, rodeado de ostentação e mordomias, uma oportunidade ideal para escapar à sua existência instável.
Este conto de fadas na superfície preenche quase a primeira metade da longa-metragem, onde viajamos neste amor entre dois jovens adultos, de realidades muito distintas, enquanto se divertem na noite americana, bebem, têm relações sexuais e convivem entre si. A fotografia de Drew Daniels ajuda-nos nesta imersão – com cores vibrantes, e recortes rápidos sem descanso, de momentos genuinamente felizes de Anora com Ivan. Se as primeiras impressões não fossem suficientes, as atitudes do filho privilegiado e mimado começam a tornar-se de tal forma palpáveis, que a própria Anora se apercebe disso, mas cuidadosamente coopta por fechar os olhos em prol de manter o sonho vivo.

A ruptura dá-se quando associados à família russa de Ivan, descobrem que o casal havia formalizado a relação através de um casamento súbito e em nada premeditado. De repente a ‘Cinderela’ vê o seu castelo de cartas ruir à sua frente, e luta com todas as forças para travar o fim do seu mundo perfeito, opondo-se ao braço direito do pai de Ivan, Toros (Karren Karagulian) e os seus capangas, da qual o argumento dá destaque, ao frio e sisudo mas afável, Igor (Yura Borisov). Este virar de página na narrativa permite injetar algum do humor característico de Sean Baker, a partir de uma vasta gama de peripécias que vão ocorrendo, até ao culminar da fatídica cisão.
Indo de encontro a interpretações, torna-se impossível não referir Madison, que encontra aqui a sua rutura com papéis secundários, para se revelar uma atriz competente de assumir a liderança de cabeça de cartaz de um filme, que lhe exige tanto de ingenuidade quanto de capacidade dramática em momentos mais tensos, como a cena da invasão da casa pelos capangas da família de Ivan. É um dos pontos altos da produção e onde a atriz ajuda a carregar substancialmente o filme. O restante elenco é competente, sem grande destaque a apontar da minha parte.
O cineasta vai pedir emprestado ao Nights of Cabiria (1957) do surrealista italiano Fellini, quer no tom oscilante entre momentos esperançosos e outros de pura tragédia, quer tematicamente, na maneira como o guião retrata a tamanha desigualdade social norte-americana. Anora (2024) efetivamente coloca-nos nos pés do sonho americano, que referi no início, de forma diferente – se na mais recente filmografia do realizador assistíamos a uma tentativa fugaz e quase de “Davi e Golias”, dos seus protagonistas em escapar da realidade em que viviam, neste mais recente filme, esse patamar é alcançado, e rapidamente colocado em jogo. O ideal americano, aqui retratado sob o olhar de Baker, não é só um elevador social arduamente tangível, mas igualmente, irregular e inseguro, ainda para mais quando Anora o consegue, não por fruto da sua emancipação singular, mas por associação a outro, o que torna este piso que atingiu ainda mais mutável à queda.

Anora (2024) é bem capaz de ser o filme mais importante de Sean Baker até ao momento, não o seu mais bem conseguido, sendo esse lugar reservado para The Florida Project (2017) claro, mas aquele que traz novidades no lugar-comum que já habituou os fãs da sua filmografia. A pertinência da história de Anora, que poderia ter muito bem sido um retrato de um caso próximo à realidade, que é rodeada de uma promessa de prosperidade ilusória. Além do filme em si ter o fator de entretenimento nas alturas, quer pelos momentos cómicos, quer pelo tom que vai escalando, em se saber qual destino espera à protagonista e a Ivan. Além da excelente direção e do perceptivo guião de Sean Baker, Anora (2024) é também importante por dar palco a Mikey Madison como uma potencial estrela, da nova geração, da atuação americana que, espero que o tempo o confirme.