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Anatomy of a Fall – Crítica Filme

by João Pedro

“Anatomy of a Fall”, que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes deste ano, é, em todos os aspectos, um thriller, mas que não fica preso aos moldes pré concebidos do género. Sandra (Sandra Hiller), uma artista literária alemã de sucesso, é chamada a responder em tribunal pelos aspetos invisíveis da sua relação com o aspirante a romancista francês – e também professor numa escola de Grenoble – Samuel (Samuel Teis). Tudo isto porque, certo dia, Samuel é encontrado morto em circunstâncias inexplicáveis, sem que se saiba se foi homicídio ou suicídio. A realizadora Justine Triet ilumina a ambiguidade dos testemunhos e as provas incoerentes apresentadas ao júri, baseando-se no raciocínio de “Rashomon” sobre o ponto de vista subjetivo (verdades subconscientemente adaptadas à narrativa que serve a pessoa na história naquele momento). Deste modo, esbate as fronteiras entre inocência e culpa.

Os filmes sobre processos judiciais ou dramas de tribunal constituem um verdadeiro subgénero dentro do género mais vasto do thriller ou do crime. Talvez seja aqui que o cinema tenha encontrado a única forma de mostrar o direito como algo divertido. Qualquer conflito que não possa ser resolvido de forma amigável tem de ser submetido a procedimentos e jargões jurídicos, razão pela qual a recorrência a este subgénero é quase obrigatória, quando todo o cinema tem como uma das suas características definidoras, pelo menos de acordo com a génese do argumento, o facto de colocar e eventualmente resolver um determinado conflito. Se se quiser desvendá-lo em pormenor, apelando a um tratamento mais racional do que passional, mas sem renunciar ao fascínio (logo, ao divertimento) que qualquer análise de algo desconhecido ou incerto desperta, a investigação criminal ou o processo judicial prestam-se bem a essa tarefa. 

Por conseguinte, tudo isto é quase o equivalente a uma autópsia para o cientista forense, que, ao examinar as entranhas de um cadáver, descobre toda a decomposição que pode ter levado à sua morte. Numa investigação ou num julgamento, trata-se também de descascar camadas para revelar o núcleo de um crime, usando palavras em vez do bisturi, embora o bisturi também possa funcionar como uma ferramenta de incisão. 

Para a sua terceira obra, que decidiu integrar neste subgénero, Justine Triet segue esta referência clássica e intitula-a “Anatomy of a Fall”. Neste caso, porém, não há uma referência direta a um crime, já que a queda em questão tem dois significados: físico e psicológico. 

© Carole Bethuel (c)LESFILMSPELLEAS_LESFILMSDEPIERRE

Um homem cai do sótão de sua casa para um chão coberto de neve, mas isso desencadeia (ou reflecte) uma queda de outro tipo, a da sua família, em particular da sua mulher (Sandra Huller). Esta mostra-se imediatamente desconfiada, pois não haveria razão para o marido cair, fatal e voluntariamente, do alto da sua casa, nem para outra pessoa entrar, viciosa e sub-repticiamente, para o empurrar. O casal vivia numa casa isolada e o seu único filho estava a passear o cão. Estes são os factos que observamos na primeira parte do filme, antes de serem recriados e avaliados ad nauseam na investigação e no julgamento subsequente. Este último é o foco da maior parte do filme, e Triet e o seu co-argumentista Arthur Harari desenvolvem-no com grande verossimilhança, tanto em termos narrativos como jurídicos. 

No entanto, o filme destaca-se já na sua parte inicial, a descrita acima, porque já nessa altura nos apercebemos de muitos pormenores significativos. Por exemplo, a transição entre o momento após a morte de Samuel, perscrutado pelo cão, e o plano seguinte em que o animal atravessa a casa já ocupada pelos agentes, para uma fotografia do seu antigo dono (é a primeira imagem dele, apenas retratado, sem vida). Estabelece-se assim uma primeira ligação entre homem e animal de estimação (ainda que este último seja mais um guardião da criança), aparentemente anódina, que será mais tarde a chave para desvendar todo o mistério.

Esta primeira parte da história, para além de impulsionar muito oportunamente o drama, é muito apertada do ponto de vista técnico, embora, mais uma vez, à primeira vista, não o pareça. Continuamos a falar das transições, neste caso através do uso da imagem e do som, como os sucessivos e progressivos planos distantes da casa, com a redução do volume da música, para voltarmos pouco depois ao interior desse local, uma vez ocorrido o infortúnio, e com outro número paralelo de planos de pormenor, novamente com aquela música, para mostrar o local do “crime” de vários ângulos. Estes exemplos servem para demonstrar um dos grandes méritos deste filme, que é o de apresentar como fortuitos ou espontâneos, quer narrativa quer tecnicamente, elementos que no fundo são muito bem pensados e fazem muito sentido. 

Este fundo de consciência corresponde bem ao género já mencionado da obra, e à sua vontade de revelar, progressiva mas incansavelmente, todas as dimensões desta queda, tanto a do homem solteiro como a do seu casamento. A verdadeira protagonista é a sua mulher, no papel de Sandra Huller, que nos oferece um desempenho tão portentoso quanto matizado, em vários registos e em duas línguas alternadas. 

© LESFILMSPELLEAS_LESFILMSDEPIERRE

O argumento e as interpretações são os pontos fortes do filme, embora, como já se escreveu, a sua mise-en-scène também não seja descuidada. Não se trata de uma obra demasiado original, visto que segue na esteira de todas as suas referências cinematográficas, mas dificilmente se encontram falhas na sua conceção e execução, precisamente devido ao seu nível de pormenor. Vale mesmo a pena mencionar uma ou outra que possam diminuir a verossimilhança do resultado final, como a facilidade em alternar de idiomas em tribunal ou a conversa recordada por uma testemunha anos mais tarde, para resolver uma dúvida, um recurso comum neste género mas que seria impossível na vida real (ninguém tem uma memória tão boa). Bem, até isso tem aqui a sua explicação. 

O filme é marcado por uma mistura de naturalismo e de fantástico, que permite à cineasta reconstituir o julgamento ao mesmo tempo que desenvolve um comentário sobre o lugar do homem e da mulher na sociedade e sobre o sistema judicial. Porém, mo que respeita a este último, é preferível pertencer à classe média e ter os meios intelectuais para a defesa – mesmo que Sandra seja alemã e responda em inglês, não pertence a uma minoria étnica ou a um meio social desfavorecido.

Em todo o caso, nem tudo é expositivo, mas deixa espaço para a interpretação, incluindo, como é frequente, a culpabilidade do acusado e as circunstâncias reais do crime mediático, para que o público tenha de tomar partido num jogo que, por mais provas e verdades que se forneçam, não deixa de ser puramente subjetivo. 

Faz-nos pensar: será que a nossa atitude no que toca às nossas relações mudaria depois de conhecermos todos os seus pormenores? Preferiríamos viver numa certa ignorância para salvaguardar as nossas amizades? Queremos conhecer a fundo as pessoas que nos rodeiam ou apenas o suficiente para manter uma relação proveitosa?

Da verticalidade às múltiplas perspectivas de uma tragédia. 

8/10

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