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Aftersun – Crítica Filme

Sorri, partilhamos o mesmo céu

by João Pedro

“Aftersun”, a obra de estreia da realizadora e argumentista Charlotte Wells é uma peça de nostalgia ambientada no final dos anos 90 – com uma banda sonora dos êxitos pop da época. Todavia, não se trata de uma nostalgia barata. Não se trata de memórias efémeras da cultura de outrora, mas de uma variedade mais humana da nostalgia, isto é, das lembranças que temos das pessoas, dos nossos arrependimentos sobre como interagimos com aqueles que amávamos, das nossas perguntas sobre se os poderíamos ter ajudado, se poderíamos ter sido melhores filhos para os nossos pais.

Alerta de spoilers

Ao descobrir uma câmara de vídeo antiga, Sophie (Celia Rowlson-Hall) recorda as férias de Verão que passou (a personagem é interpretada na sua versão mais jovem pela atriz Frankie Corio) com o seu pai Calum (Paul Mescal), quando tinha 11 anos. À beira da puberdade e do desejo de independência que se segue, foi provavelmente a última vez que a jovem Sophie quis passar férias com o pai, e embora nunca tenha sido explícito, é pesado insinuar que aquela foi a última vez que o pai e a filha estiveram juntos.

O filme é intercalado com sequências de sonhos surreais em que a Sophie adulta surge numa rave purgatorial iluminada por estroboscópios. À medida que a luz pisca, ela vislumbra o pai ao longe – a dançar com o que parece ser uma exuberância forçada. E é revelador que o pai que ela vê nos seus sonhos ainda é o jovem de 30 anos que passou férias com ela na Turquia.

A maior parte do filme permite-nos simplesmente acompanhar Sophie e Calum naquelas férias. Ao longo do tempo, a cineasta Charlotte Wells revela detalhes de que nem tudo está bem com Calum. Alguns desses detalhes são percebidos pela jovem Sophie, mesmo que ela não consiga processá-los. Ela sabe, por exemplo, que o pai vive momentos críticos no que diz respeito a questões financeiras (eles estão hospedados num hotel decadente, mas passam os dias a fingir que são hóspedes de um hotel mais sofisticado), mas é demasiado jovem para perceber essas lutas entre o dinheiro e os Homens. Ela simpatiza principalmente com a situação do pai, desculpando-se quando perde uma máscara de mergulho cara, mas também involuntariamente cruel, descartando a sugestão do pai de inscrevê-la em aulas de canto. “Não prometas coisas que não podes pagar“, diz-lhe a pequena Sophie, com a frieza e a honestidade de uma criança que não entende como os adultos podem magoar-se facilmente ao ouvir meia dúzia de palavras.

Boa parte do filme incide num drama de amadurecimento, enquanto passamos o tempo com Sophie a observar o mundo que a rodeia  – com a curiosidade especial que perdemos quando atingimos a idade adulta. Não obstante, ao passo que a filha vive o Verão da sua vida, o pai luta contra os seus fantasmas. Há cenas que se concentram em Calum na ausência da filha, o que nos leva a perguntar se são imaginadas pela Sophie adulta – a tentar descobrir o que o pai estava a passar – ou se são verdades apresentadas pelo Deus do cinema (que tudo vê). Calum esgueira-se para a varanda e fuma quando a filha já adormeceu; dança de uma forma que se torna inquietante, como um alienígena a tentar imitar a sua ideia de um humano a divertir-se. Em vários pontos, vemo-lo cair contra pilhas de tapetes, como se estivesse desesperadamente a lutar para se manter acordado, ou vivo.

Ver o jovem Paul Mescal a interpretar um pai é inicialmente intrigante, dado o seu trabalho recente em “Normal People”. Embora seja dificil encarar, à primeira vista, Mescal como um pai de 30 anos, acaba por revelar-se uma escolha de elenco inspirada, pois aumenta a sensação de que Calum teve a responsabilidade de cuidar de outra pessoa que surgiu muito antes dele ser capaz de cuidar de si mesmo. Corio é, por outro lado, uma revelação a contracenar ao lado do ator irlandês. Wells explora a eficácia dos olhos expressivos da sua jovem atriz, com Sophie a viver muito do que vê, sem estar apta a absorver o compêndio da realidade.

Sophie é uma criança inteligente, mas a palavra-chave é “criança” e, desta feita, não entende as coisas tanto quanto pensa. Os vislumbres que temos da Sophie adulta também sugerem que ela é uma adulta inteligente que ainda não entendeu as coisas. Podemos até ser levados a uma leitura sombria do subtexto, que sugere que ela está destinada a seguir os problemas do pai.

Mescal e Corio têm uma química tão credível que é fácil esquecer que estão a ser filmados. Mas “Aftersun” é o trabalho de uma nova mestre, uma especialista instantânea em cinema puro. Os seus protagonistas falam muito, mas raramente dizem alguma coisa, porque Wells conta a sua história através de imagens. Calum vagueia frequentemente fora de cena, a câmara recusa-se a segui-lo como se soubesse que ele precisa de algum tempo sozinho. Em momentos chave, a câmara permanece atrás dele enquanto ele deixa fugir algumas emoções invisíveis. Quando vemos a sua cara em grande plano, surge disfarçada de pessoa feliz, em conjunto para benefício de outra pessoa, seja a sua filha, outros turistas ou vários trabalhadores do hotel. Pelo contrário, a câmara está quase sempre na cara de Sophie. O filme sabe quem era a Sophie neste momento, mas não consegue apanhar bem o pai dela. Quem eram os nossos pais quando tínhamos 11 anos ?

Nesta era de cinema que, muitas vezes, nos enfia os seus temas meio formados pela goela abaixo, de personagens que nos dizem explicitamente o que estamos a ver, a estreia de Wells é uma peça de cinema refrescante, revigorante, inquietante e profundamente triste. Wells nunca tem de nos dizer o que estamos a ver porque tudo o que ela nos mostra preenche outra peça de um quebra-cabeças trágico. Nada é mais satisfatório do que um filme que deixa o público a pensar, um filme que nos permite trazer parte de nós próprios para a história. Durante cerca de 95 minutos, estamos num hotel manhoso com um pai e uma filha, mas também viajamos de regresso à nossa própria infância, ou talvez ao nosso futuro imaginado ou ao nosso presente demasiado real. Independentemente disso, estamos todos vivos. Se há uma mensagem a retirar de “Aftersun” é que não devemos ter medo de fazer algo que nos possa fazer sentir tolos ou parvos naquilo que vivemos hoje, porque, de um momento para o outro, podemos sentir que o hoje é irrecuperável.

Podes encontrar o filme na Filmin.

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