Com referências claras e ambiciosas a “Il gattopardo”, de Luchino Visconti, ao melodrama de Vincent Minelli e aos westerns de Sergio Leone, Tiago Guedes acaba de adicionar o seu nome à lista de realizadores que deixaram um marco na edição do Festival de Veneza deste ano.
Desde que foi selecionado para competir ao Leão de Ouro na septuagésima sexta edição do Festival de Cinema de Veneza, “A Herdade”, o filme de Tiago Guedes, tem assumido algum protagonismo nos olhares dos apreciadores de cinema.
Adicionalmente, a longa-metragem foi a eleita de Portugal para concorrer ao Óscar na categoria de Melhor Filme Estrangeiro na próxima edição dos Óscares da Academia.
Na vida, quando as coisas acabam, acabam definitivamente. É este o conselho que o pequeno João recebe do pai, ao vislumbrar o cadáver do irmão mais velho pendurado numa árvore, no topo de uma colina, na propriedade que a família possui no sul das margens do Tejo. A transição para a vida adulta de João é nítida e selvagem, tal como a consciência, numa idade tão tenra e significativa, de que o nome da família tem uma influência fulcral no Portugal feudal de 1946.
De repente, em 1973, o paradigma nacional já é totalmente diferente. António de Oliveira Salazar, o ditador que mais serviu na história da Europa, morreu, e o regime militar autoritário está a cerrar os punhos, especialmente depois da guerra em África.
João Fernandes tornou-se o chefe da família. Casado com a filha de um dos principais chefes militares do país, é apologista de que não se prestem contas no que toca a desenvolvimentos políticos, apesar da relevância do seu nome, uma espécie de príncipe solitário e revolucionário no seu pequeno reino.
O regime está a pressioná-lo a tomar uma posição pública, para que defenda os ideais da pátria. Efetivamente, esta até poderia ser a premissa que o faz requerer a companhia do cigarro e do copo de uísque, todavia, o tormento acaba por ser despontado por aqueles que o rodeiam: o filho que não compreende, a mulher que não ama, a administração da herdade, e os trabalhadores que dependem de si.
Em contrapartida, o grande poder da mudança acabaria por conduzir Portugal à Revolução dos Cravos e, a partir daí, nada seria como antes. Os trabalhadores almejam adquirir direitos que estam trancados numa caixa de pandora há décadas e décadas.
As terras cultivadas de solo a solo seriam agora reclamadas por aqueles que a trabalham, ao passo de ficarem sob o domínio dos patrões e, desta feita, a própria definição de “Herdade” teria de ser reavaliada.
“É evidentemente um grande dia. O essencial para nós é mantermos a unidade das forças democráticas. As Forças Armadas iniciaram o caminho para a realização da democracia e para pôr um termo à Guerra Colonial, mas é agora que todos os problemas, os grandes problemas que se põem à nossa Pátria, vão começar.” – Mário Soares; na chegada à estação de Santa Apolónia depois do 25 de abril de 1974
O terceiro ato do filme espelha o ano de 1991. O nome da família decaiu por completo, sendo que toda a propriedade começa a ser vendida de forma gradual. João tenta salvar o legado da família ao máximo, mas o capitalismo e a própria história já o ultrapassaram. Os trabalhadores, outrora leais, começam a bater asa em busca de melhores condições de trabalho noutros locais, visto que nem sempre recebem o salário ao fim do mês. Ao mesmo tempo, o seu filho, que entretanto se tornou viciado em droga, transita de clínica em clínica em busca da desintoxicação divina.
Porém, João recusa a reconciliação com a idade ou com o destino trágico da sua classe. Acima de tudo, continua a defender uma imagem de aristocrata, ou por outra, uma personalidade maior que a própria vida e, que por isso, ainda pode definir o seu próprio destino.
Contudo, quando um segredo bem guardado é finalmente revelado, a sua história vai completar o ciclo prometido. Assim, vai acabar por ser guiado ao local exato em que refletiu acerca da lição mais importante da sua vida: Tudo acaba um dia.
Tiago Guedes, o realizador, apresenta aqui um projeto extraordinariamente ambicioso. Com três horas de duração, “A Herdade” conta-nos a história de um herói trágico, um porta-voz não intencional de uma classe e de uma época que se tentam coordenar com as mudanças políticas e sociais que a transcendem.
Na mesma linha imaginativa do impecável “Il gattopardo”, de Luchino Visconti, João Fernandes, tal como Don Fabrizio, o príncipe deprimido de Salina, enaltece uma masculinidade que, com o tempo, se traduz num patriarcado tóxico, incapaz de processar a inevitável reconstituição do seu comportamento ganancioso.
Através do excelente trabalho de fotografia de João Lança Morais, Guedes aproveita as paisagens vastas para destacar a solidão do seu protagonista num ambiente que, de forma gradual, vai tomar um tom cada vez mais sombrio.
Com influências claras dos ocidentais sobre o legado e a impressão da solidão de João, bem como do melodrama clássico de outra época até à construção de um clímax dramático através da sugestão de revelações familiares, o filme acaba por entrar em fases monótonas de decisão.
Não obstante, “A Herdade” nunca deixa de ser um drama robusto, mas, certamente, não reivindica louros de originalidade ou modernismo. Porém, deixa a melhor promessa para um criador que parece entender completamente os seus mecanismos para contar histórias.
Nenhuma catástrofe é concedida, todavia, no sistema criado pelo cineasta, é servida uma conclusão original; uma catarse, um retorno analítico do protagonista à fortaleza isolada e tranquilizadora da infância. Para perceber como deve continuar a viver, terá de se recordar que nenhum homem (ele inclusive) é uma ilha.
Por conseguinte, ao contrário do que sucedeu com João Fernandes, Tiago Guedes tem um futuro risonho pela frente.