“A Comédia de Deus” é uma obra que não se presta à redução e catalogação – seja de género ou de corrente – difícil de classificar num comportamento estilista, mas, por isso mesmo, é definitivamente adequada para representar a poética de João César Monteiro. É um olhar fora do tempo que nunca é anacrónico; faz da meticulosidade um signo característico, valoriza a encenação em todas as suas expressões, em busca constante da composição mais fotogénica e mais harmoniosa de formas no espaço, de luzes e cores.
Inicialmente somos apresentados à figura do protagonista, mais uma vez João de Deus (papel desempenhado pelo mesmo autor numa trilogia, primeiro em “Recordações da Casa Amarela”, depois neste e, por fim, em “As Bodas de Deus”), um homem de intelecto com a missão de supervisionar uma gelataria.
A partir das relações com as mulheres, descobrimos o lado travesso do protagonista, primeiro apaixonado por uma camponesa e depois pela filha de um talhante. As repercussões desta última ligação, marcarão inevitavelmente a vida de João.
É surpreendente ver as mudanças de realização presentes no curso do desenvolvimento da narrativa. Este procedimento em camadas, que se descobre timidamente numa evolução que prende a atenção, provoca a própria visão e justifica a sucessão de acontecimentos cuidadosamente expostos, e, de repente, postos de lado.
Por outro lado, a respiração lenta e o uso mínimo da montagem ajudam a mergulhar na história, de modo a perceber minimamente os pontos de inflexão, em favor de um uso leve e casual apesar da considerável duração do filme e do caráter puramente discursivo (não obstante, a partir da segunda parte o ritmo diminui, dando lugar à exaltação dos corpos).
A palavra, precisamente, no universo de Monteiro assume contornos inusitados e particularmente definidos. É como se a imagem se prestasse ao serviço do verbo e a carga expressiva da obra se concentrasse inteiramente neste último.
A linguagem é, portanto, colocada diretamente num plano que suaviza o sentido, mas que não o oculta, e, ao contrário, surge numa clareza muitas vezes irónica, sempre clara e, ao mesmo tempo, crítica.
A obra é permeada por um afeto fora do comum que, se por um lado prova autenticidade ao olhar fílmico, por outro corre o risco de se forçar a questionar a fronteira entre o pomposo e o natural, cada vez mais discernível.
Em parte, é a conceção do divino livre de esquemas: referências contínuas a Deus (emblema da pureza e da misericórdia, às vezes combinado com perfume), bem como ao Paraíso – visto mais como uma morada protetora do que um estado espiritual – a sede terrena de tudo, totalmente abstraída do contexto metafísico em que vigora a ética do bom gosto, onde o libido sexual não é pecado e a tradição torna-se sagrada.
‘A Comédia de Deus’ não é a história de uma obsessão nem a história de um homem e do seu declínio moral. Acaba, desta forma, por favorecer uma retórica volumosa, ora eloquente, ora desproporcional, mas sempre lúcida sobre as condições fanáticas do moralismo, portanto sobre a fratura abismal que é o embate ético-estético. Fá-lo a partir de uma perspetiva libertina e de um olhar tristemente ancorado nos bons hábitos e costumes: um conservadorismo secular rebelde e distinto.
“No mundo em que vivemos, há de pagar sempre o justo pelo pecador.”
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